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Ficção – Identidade

quarta-feira, junho 4th, 2008

ELA – Acho que estou com crise de identidade.

ELE – Crise de quê?

ELA – Identidade.

ELE – Ah, tá.

(silêncio)

ELA – Você ouviu?

ELE – Ouviu o quê?

ELA – Como ouviu o quê?

ELE – Ah, da crise. Ouvi.

ELA – E não vai dizer nada?

ELE – E tem alguma coisa para dizer?

(silêncio)

ELA – O meu problema é você.

ELE – Ei, não me meta nessa história.

ELA – É você, sim.

ELE – Não tenho nada a ver com a sua identidade. Ou falta de identidade. Ou sei lá o que você quer dizer com isso.

(Amália inquieta)

ELA – Me diga: qual é a minha cor preferida?

ELE – O que a sua cor preferida tem a ver com o seu problema de cabeça?

ELA – Não é de cabeça. É de identidade.

ELE – Dá no mesmo. Mas é azul, por quê?

ELA – A SUA cor favorita é azul.

ELE – A sua também.

ELA – Não, é a sua. Esse é o problema.

ELE – Tem algum problema em gostar de azul?

ELA – Adalberto!

ELE – Ou problema em você gostar da cor que eu gosto?

(indignada)

ELA – Adalberto!

ELE – Não entendi.

(silêncio)

ELA – Somos casados há vinte e dois anos e você não sabe a minha cor preferida?

ELE – Você me disse que era azul. Deve ter dito, sei lá, quando namorávamos.

ELA – Você é quem gosta de azul.

ELE – Você também.

(longa pausa)

ELA – O problema é meu.

ELE – Eu não sei qual é o problema, mas há um minuto ele era meu.

ELA – Vamos, agora responda: qual é a comida que eu mais gosto?

ELE – Não é possível. Você endoidou, Amália.

ELA – Dá para responder?

ELE – Picadinho.

ELA – Claro, picadinho.

ELE – Viu?

(irritada)

ELA – Picadinho é a SUA comida preferida. Não agüento mais comer picadinho. Para ser sincera, eu nunca suportei comer picadinho. Eu detesto picadinho. Eu sempre detestei picadinho! Pior do que o meu picadinho, só o picadinho da sua mãe.

ELE – Você me disse…

ELA – …esqueça o que eu disse! Abra bem os ouvidos a partir de agora: De-tes-to picadinho. Entendeu?

ELE – Entendi. Mas…

ELA – É, o problema é mesmo meu. E é meu desde que eu permiti que você ditasse as regras. Que você impusesse o que você gosta como regra geral. Que você determinasse o que eu mesma gosto. Adalberto, eu não sei mais do que eu gosto. Eu sei que a minha cor preferida não é o azul e que jamais colocaria picadinho em meu cardápio se não fosse para agradar você. Só isso.

ELE – Eu sempre achei que você gostava de picadinho. E da cor azul. Lembra que eu te dei uma saia azul que você adorava?

ELA – Não, eu não adorava. Para ser sincera, sequer gosto de saias. Eu prefiro as calças, porque me deixam mais à vontade e me sinto mais bonita. E aquela saia azul era brega.

ELE – Você usou a saia diversas vezes, Amália.

ELA – Sem gostar. Essa é a verdade. Desculpe.

ELE – (olhando para o teto) Eu nunca entendi muito as mulheres, mas agora entendo menos ainda.

ELA – Como você não me entende? Você nunca percebeu que eu não comia picadinho com a mesma vontade que eu comia carne mal passada?

ELE – Carne mal passada? Nunca fizemos carne mal passada em casa.

ELA – Engano seu. Eu fiz algumas vezes, quando as visitas vinham. Mas a sua era bem passada, como sempre.

ELE – Pensei que você também preferia a carne bem passada.

ELA – Pois não. Não mesmo.

ELE – Então por que comia?

(Amália abaixa a cabeça e muda o tom de voz)

ELA – Não sei. Esse é o problema.

ELE – Primeiro o problema era meu, depois era seu e agora você não sabe a quem ele pertence?

ELA – Mais ou menos isso.

ELE – E para que você precisa saber disso agora? Não está tudo bem?

ELA – Como pode estar tudo bem depois que eu descobri que perdi minha identidade?

ELE – De novo o papo da identidade…

ELA – Você sabe me responder qual é o presente que você me deu e que eu mais gostei até hoje?

(pensativo)

ELE – Hummm… aquele par de brincos de diamante.

ELA – Sem dúvida foi um belo presente. Bonito, de bom gosto e que todas as pessoas elogiaram. Mas o que eu nunca me esqueço foi quando eu quebrei os dois pés, você se lembra disso? (risada). Eu me lembro com carinho daquela época. Porque eu estava com os pés quebrados e em todos os dias você nunca se esqueceu de me trazer um bombom e uma rosa. Naqueles dias você fez o jantar para mim e jantamos juntos na cama. Foram os seus melhores presentes.

(Adalberto fica atônito)

ELA – Você não sabe nem que eu sou, depois de tantos anos juntos. Simplesmente porque eu mesma não sei quem eu sou.

ELE – Você é a mulher que eu amo.

ELA – De qual jeito você me ama? Assim, com os seus gostos, ou com os meus próprios? Você não sabe quem eu sou para me amar. Eu me transformei em alguém que não recorda os próprios gostos.

(Amália sai e volta com uma mala)

ELA – Preciso ficar sozinha.

ELE – Amália, o que significa essa mala? Por que você precisa ficar sozinha? Você vai voltar?

(Amália abre a porta)

ELE – Mas… Mas… Para onde você vai?

(Amália olha e sorri)

ELA – Procurar minha identidade.

(Amália bate a porta e sai).

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Alegrias,
Fernanda.