Ficção – Escolhas de Deise

Quando era criança, não pensei em ser outra coisa que não mulher casada. Conheci o Henrique quando tinha 17 anos e me apaixonei perdidamente – mas perdida fiquei quando resolvi casar. Na verdade, nunca saberei se foi amor, porque antes dele só havia paquerado o vizinho, que tinha 10 anos a mais e me achava uma menina (o que, de fato, eu era). O Rique tinha quase a minha idade, trabalhava com o pai em uma construtora e tinha muito dinheiro. Na verdade, o pai tinha muito dinheiro. Para meus pais, era o Rique um afortunado endinheirado.

Estudei até o terceiro ano do colegial e Rique, que não pensava em fazer faculdade, não me incentivou a cursar uma também, afinal, não iríamos precisar. Com aqueles olhos verdes, ele me conquistava a obedecer. Eu apenas dizia sim e pronto, se ele estava feliz, eu também estava. Assim, nós casamos quando eu completei 18 anos e fomos morar em uma das casas de seus pais. Uma das muitas que eles tinham.

No começo, eu era feliz. Eu acho que era feliz, porque se aquilo não era felicidade, eu não sei o que pode ser e me sinto constrangida em pensar que posso nunca ter sido feliz de verdade antes de agora. Mas até chegar agora muito passou.

Rique chegava tarde em casa e eu tinha empregados para fazer tudo por mim, mas como não trabalhava, eu mesma me aventurava na cozinha para preparar o jantar que, aliás, ele quase nunca comia.

Logo veio o Riquinho. Eu não queria esse nome, mas como tudo na vida, não parei para discutir. Ele quis colocar seu nome no filho, estava tudo certo, então. A Regina veio logo em seguida. Os dois não tinham nem um ano de diferença e por muito tempo eu esqueci de mim. Era como se eu não existisse. Rique voltava cada vez mais tarde e as poucas vezes em que eu saía era para eventos de sua empresa. Quando ele dizia que eu podia ir. E eu nunca questionei.

Meus filhos cresceram, foram para a escola e eu tinha orgulho daquelas duas criaturas. Minha vida era dedicada a eles e ao meu marido e era uma boa vida, uma vida confortável. Até que, um dia, num daqueles dias em que o Rique chegava tarde, eu disse que prepararia um lanche enquanto ele tomava banho. Encontrei uma mancha de batom no colarinho da camisa, aquela coisa clichê-ridícula-que-parece-mentira. Mas era verdade. O meu marido “perfeito”, aquele que todos diziam que era um presente dos céus, era um traidor mentiroso.

Quando mostrei a camisa, do lado de fora do Box do banheiro, ele desligou o chuveiro, enrolou uma toalha no corpo e disse apenas Não comece com sermão. Que ótimo, eu tinha acabado de descobrir uma traição e meu companheiro me mandava não começar com um sermão? Completou que não queria lanche nenhum e ia dormir. Foi para a cama como se nada tivesse acontecido. E passei aquela noite no banheiro chorando. E imaginando onde eu estava? Aquela Deise de 17 anos tinha morrido e todos os meus sonhos tinham ido junto para a cova.

No dia seguinte, quando saí do banheiro, ele já tinha ido embora para o trabalho e levado as crianças para a escola. Na hora do almoço eu as busquei, passamos em casa para arrumar as malas e disse apenas para que confiassem em mim. Sem despedidas, sem explicações, sem gritos ou desespero, escrevi uma carta com a palavra Adeus e deixei sobre a cama. Fomos embora para a casa dos meus pais. Eu não tinha casa. Nem a casa era minha. Por anos eu vivi os sonhos do traidor, as vontades dele no ambiente dele.

Em poucos dias eu aluguei uma casa e instalei as crianças no mesmo bairro para que pudessem ficar perto dos avós. E percebi que não queria pensão porque não desejava nada que vinha daquele homem. Nada. Se eu não tive amor por quase 10 anos, não seria agora que iria pedir dinheiro.

Na primeira visita ao mercado eu percebi que nem sequer sabia mais do que eu gostava. Não sabia qual comida comprar e nem mesmo qual pasta de dentes escolher. A prateleira me mostrava um mundo de possibilidades que eu nunca tive. Pela primeira vez, eu poderia escolher. Nem que a escolha fosse pelo mais barato. Era a minha escolha e eu dei muito valor.

A única coisa que eu sabia fazer era comida. Por causa dos meus treinos naquela cozinha com duas cubas, um metro de pia de granito para abrir as massas, um fogão de seis bocas e todos os utensílios mais bonitos que se via em revista, eu aprendi a me virar com um fogão vagabundo que comprei usado, uma pia minúscula e itens de plástico do mercadinho. E comecei a entregar marmitas.

Em pouco tempo, tive que contratar uma moça para me ajudar. Colocamos na porta da casa alugada uma placa que dizia Cozinha da Deise e instalamos mesinhas no quintal. A clientela cresceu e eu abri um restaurante. Eu podia viver sozinha. Meus filhos cresceram e aos 17 anos Regina conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Foi naquele dia que eu tomei uma decisão. Iria conversar com ela como nunca tinha feito em toda a nossa vida.

Eu não vou proibir nada, minha filha. Muito pelo contrário, porque namorar é saudável. Mas não cometa uma loucura. Vá estudar, vá se divertir, sair com suas amigas, aprender um ofício e então você poderá pensar se quer se juntar a alguém. Eu vou te contar a minha história, filha… e a decisão, depois, será sua.

Regina casou-se aos 30 anos com o mesmo rapaz, depois de anos de namoro e os dois terem concluído a faculdade. Hoje eu sou uma mulher ocupada. Além da minha rede de restaurantes, que estão espalhados por todo o país, ajudo a cuidar dos meus dois netos, um de cada filho. Tenho um namorado, mas não quero mais casar. Em compensação, quando vou ao mercado hoje em dia, eu sei exatamente o que comprar. O que eu gosto, o que eu quero. Hoje, aos 55 anos, eu sei quem eu sou, pela primeira vez na vida.

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