Posts Tagged ‘ficção’

Você, leitor, me ajuda a continuar a história! (3)

segunda-feira, maio 17th, 2010

Para ler a parte 1, clique aqui.

Para ler a parte 2, clique aqui.

Ali estavam seu ex-marido e a mulher por quem Lara havia sido trocada. Não trocada, porque é palavra forte, mas a sua ex-amiga, ex-vizinha e ex-confidente. O seu melhor amigo durante anos, aquele seu primeiro amor que estava na mesa com ela, não deve ter entendido a expressão de Lara. Ela cerrou os dentes e se tivesse coragem, teria levantado da cadeira e dado um tapa em cada um. Como podia estar tão feliz naquele momento e se deixar machucar por aquele canalha era um mistério. O mistério de um casamento desfeito.

Mas Lara não precisou levantar. O ex-marido chegou perto de sua mesa e como se não estivesse acompanhado, fez uma pergunta que soou ridícula.

- Olá, Lara. Não me apresenta o seu amigo?

Ela não podia estar ouvindo aquilo. Era patético. Então Lara descobriu que não precisaria dizer nada, mostrar nada, insinuar nada para dar o troco. O ciúme do ex-marido era tão evidente que ela quase soltou uma risada. Olhou com cumplicidade para seu amigo, que deixou uma nota em cima da mesa, pegou em sua mão e a levou para fora do café. O ex-marido e sua acompanhante ficaram como estátuas. Nada foi dito, mas tudo foi compreendido.

Na saída, o seu melhor amigo, o seu antigo amor, convidou Lara para passar o final de semana no sítio com sua família. Afinal, ela não era uma estranha. E Lara aceitou. Porque, oras, ele não era um estranho. E a história de um dia que começou desastroso terminou com a melhor das promessas para Lara. A promessa de que a tristeza nunca é eterna.

FIM

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Obrigada à Osinete (que comentou no primeiro post, e a história já tinha um rumo, rsrsrs, por isso vou ocupar sua ideia em outra ocasião, certo?) e à Ana e Audrey, que participaram mais uma vez. Adorei a experiência de escrever com vocês, muito bacana!!! (Viu, Ana, final feliz! Eu só escrevo histórias com final feliz, hehe)

Quando quiserem sugerir um tema, fiquem à vontade. E já que estamos falando de escrever, não deixem de ler sobre o Desafio Nacional no post aqui embaixo.

Alegrias,

Fernanda.

Você, leitor, me ajuda a continuar a história! (2)

sexta-feira, maio 14th, 2010

Para ler a parte 1, clique aqui.

O telefone tocou e Lara ouviu a voz cansada do chefe do outro lado da linha. A reunião estava cancelada, o que era bom porque, afinal, ela havia esquecido a bolsa em casa. Teve o dia de folga e ficou sem rumo. O trabalho era seu escape, como se ela fugisse da própria vida quando era profissional. Sem relatórios, era só uma mulher com vestido sujo a caminho de nenhum lugar. Parou na banca de jornal e percebeu que conhecia o homem que estava ali.

– Lara? Lara, não acredito! Nossa, que surpresa maravilhosa! Você continua linda! – Era ele, seu grande amor, seu maior amor, aquele que conhecera muito antes que qualquer ex-marido pudesse existir. Aquele homem havia sido seu melhor amigo durante tantos anos, mas ela sempre soube que não era o que queria dele. Entre pensar que era muito sorte encontrá-lo e responder que sim, iria ao café com ele, foram poucos minutos de conversa. Lá de dentro pode ver quando o canalha do ex-marido passou com uma mulher pela calçada. E foi quando se perguntou por que é que havia se casado com ele?

Então, o casal entrou no café.

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Opa, estou gostando da história, e vocês? ;-) Obrigada à Carol, Ana, Thayná e Audrey que me ajudaram nessa segunda parte. Todas tiveram participação, eu dei um jeitinho de colocar um pedaço de cada uma aqui, curtiram? O mais interessante é que essas histórias, hum, densas, são completamente diferentes da leveza e comicidade de Blanda, perceberam?

E agora, o que vai acontecer com Lara? Deixe no recado sua sugestão. Vamos terminar essa história?

Alegrias,

Fernanda.

Você, leitor, me ajuda a continuar a história!

quarta-feira, maio 12th, 2010

Lara saiu de casa, atrasada como em todos os dias, mas daquela vez não seguiu o ritual café-escovardentes-pegarbolsa-alimentarcão-sair. A preocupação com o relatório que iria apresentar era tanta que não tomou café, apenas escovou os dentes; não pegou a bolsa, mas alimentou Joca e saiu. O salto enroscou na calçada esburacada (por que ainda uso salto alto se o médico disse que me faz mal?) e ela tropeçou quando pensava em dar aquele par. Caiu em uma poça de água fedorenta e gritou alto um palavrão. Por que as manhãs tinham que ser daquela maneira? Desde que Gilberto saíra de casa, ela nunca mais fora a mesma. Estava distraída, andava atrasada, pouco conversava e mesmo que não tivesse a menor intenção de aceitar o cretino do ex-marido de volta, não parava de pensar nele. Por que ele fizera aquilo? Quando levantou, tentou secar o vestido sujo e antes de chegar ao trabalho teve uma surpresa.

Você, leitor, me ajuda a continuar a história!

Qual foi a surpresa que Lara teve?

A partir da resposta de um recado deixado aqui, eu continuo a história :-) E sim… pode ser o que você quiser! Afinal, nem eu sei como essa história vai continuar. Só depende de você.

Alegrias,

Fernanda.

Frenética vida de Lurdinha

domingo, novembro 8th, 2009

Não é que Lurdinha não sabia que queria. Ela sabia, mas não conseguia admitir. A vida parecia boa demais para que ela dissesse em voz alta o que se passava pela sua cabeça. Hoje, depois de mais um sonho com aquele vizinho estranho do andar de baixo, Lurdinha se deu conta que poderia precisar de um psiquiatra. O vizinho não estava tentando matá-la, não era possível. Assim como seu marido não era tão ruim como ela pensava. Porque, afinal, a vida parecia boa demais. Para os outros. Depois de uma ducha quente, mesmo em um dia igualmente quente, ela colocou saltos altos e esqueceu a bolsa. No trânsito, um guarda narigudo parou o carro e o documento não estava com ela. O marido de Lurdinha desligou o telefone sem ouvir uma palavra e depois de dizer “estou em uma reunião”, mas a sua própria reunião começaria em meia hora e ela estava dentro do carro com a polícia ao lado. Foi liberada, mas só depois de um amigo, que conhecia a polícia porque era jornalista, ter dito que estava tudo bem. Lurdinha odiava esse amigo, na verdade, porque ela odiava todos os jornalistas filhos-da-mãe e que adoram violência. O salto quebrou na entrada do elevador e ela chegou atrasada para a reunião. Deu com a cara na porta de vidro que estava fechada e lembrou-se que precisa usar óculos. Podia marcar, então, psiquiatra e oftalmologista de uma só vez. O colega de baia foi demitido, que merda, ele era muito melhor do que ela, pensou. Na saída, o chefe babaca a chamou na sala e fez insinuações a que ela teve vontade de responder com um cuspe. Resolveu fingir que não era assédio e comentou que estava atrasada para o jantar com o marido, que não existia. O jantar. E quase o marido, considerando a quantidade de vezes que Lurdinha jantara com ele nos últimos meses. Sentada na sala, sozinha, pensou no vizinho mais uma vez, lembrou do sonho e da vontade de gritar que tudo o que ela queria, na verdade, era morar no meio do mato, perto de bichos e com um companheiro que lhe fizesse o jantar. Lurdinha não pedia muito. O que tinha podia parecer tanto para umas, mas não para ela. E como não sabia por onde começar, no dia seguinte tomou o banho gelado, usou tênis, chamou um táxi e pediu demissão e o divórcio, começou terapia e a usar óculos. Três meses depois reencontrou o vizinho em uma festa e descobriu que seus sonhos estavam totalmente errados. Ele era chefe de cozinha e em seis semanas se mudaram para uma casinha no meio do mato.

A Páscoa de Ana Cláudia

quinta-feira, abril 9th, 2009

Eu não gosto de chocolate porque irrita a minha pele e eu empipoco inteira. Mentira, eu amo chocolate, mas eu não posso comer porque engorda. Droga de dieta, ela só me permite comer 900 calorias por dia, mas desse jeito eu vou virar uma sopa ambulante, mas sopa sem batata e macarrão. Sopa de água, delícia gastronômica. Se eu comer apenas um ovinho de Páscoa inteiro eu ultrapassei todas as calorias do dia. Então decidi, eu farei isso pela minha filha, mas só por ela, por que como uma criança vai entender que a mãe não quer comer ovo de Páscoa na Páscoa?

Fiz as contas: posso ingerir todas as 200 gramas do ovo (que eu acho pequeno, porque eu sei que sou capaz de muito mais, eu conheço o meu potencial) e não como mais nada durante o dia. Eu acordo e tomo de café da manhã um pedaço de ovo. No almoço, um pedaço de ovo. No café da tarde, mais ovo, na janta ovo e eu não engordo nada, porque mantive as calorias do dia. Ah, é fácil seguir uma dieta.

A Elianinha quer um ovo de Páscoa da Barbie. Ovo não é de chocolate? A Barbie só vem estampada na embalagem, não é? Mas de que adianta tentar explicar? Não adianta. Pensei em fazer um ovo em casa e botar uma de suas Barbies dentro como surpresa. Perfeito, se não fosse pelo fato de que eu precisaria roubar uma embalagem. Desisti do plano e fui ao mercado comprar. Só que eu esqueci de que comprar em cima da hora não é a melhor estratégia. A Páscoa chegou e eu entro no terceiro mercado com esperança de achar o bendito ovo da Barbie, porque eles esgotaram nos outros lugares.

- É ele, é ele! – eu grito, para o nada.

- Ei, moço, esse ovo é meu! – exclamo quando vejo um homem colocando a mão no meu ovo. O último ovo da Barbie. – Devolve.

- Devolve? Como assim, devolve? Você nem estava com ele.

- Mas eu ia pegar, só que você chegou uns segundos antes de mim.

- Você ia. Eu peguei.

Que insolente esse homem. Que grande babaca. E que verdade, também. E agora, como é que eu explico que não posso chegar em casa sem esse ovo? E que nos outros mercados ele acabou, esse é o último da espécie? Melhor ser sincera.

- Eu não posso chegar em casa sem esse ovo.

- Sério? Nem eu – ele respondeu já andando em direção ao caixa.

- Mas senhor… moço… seu… é que eu não tenho mais onde buscar, a minha filha está na casa dos avós e se eu chegar sem esse ovo posso nem entrar lá.

Ele não respondeu, eu tinha que apelar.

- Não é fácil ser mãe solteira.

Ele parou. Funcionou. Mas poxa, eu não estava mentindo, não era bem uma chantagem emocional, era só… uma informação na hora certa, oras.

- Jura?

- Hum, hum – balancei com a cabeça e fiz um sorrisinho meigo.

- Também não é fácil ser pai solteiro e minha filha quer esse ovo. Tchau.

Ahhhhh como ele podia usar a minha técnica contra mim mesma? Isso é jogo sujo, é falta de criatividade.

- Ah, tá bem. Você é pai solteiro, então?

- Minha ex-mulher venceu a eleição para deputada federal, foi morar em Brasília, mas nunca mais voltou porque se arranjou com um senador. Já está no segundo mandato, acho que está bem, a filha pode vê-la nas páginas de jornal vez ou outra, mas as denúncias nunca são provadas e tudo bem. Ela não vem nunca, já pedi a separação, então eu posso me considerar pai solteiro, certo?

- Ah, minha nossa, a sua mulher é aquela de cabelo vermelho… aquela aqui da cidade? A…

- É ela mesma, nem precisa dizer o nome, mas é ex, viu? Ex. Agora dá licença que minha filha está esperando o ovo.

- Quantos anos ela tem? – eu perguntei.

- Sete.

- A minha tem seis. O pai se mandou no mundo e hoje eu vou quebrar a minha dieta só parar comer ovo de Páscoa o dia inteiro com ela, você entende como ela é especial pra mim?

- Só por que você vai quebrar a dieta?

- Você é homem, nunca vai entender.

- Eu entendo certas coisas de mulher, sim. Minha filha é quase uma moça e sou eu quem dou as dicas. Você não deveria se preocupar em quebrar dieta por comer um ovo de Páscoa.

- Só porque você quer esse mesmo ovo, né?

- Não. Porque você não precisa, está bonita desse jeito.

Bonita? Eu, bonita? Desde que o desgraçado do meu ex-marido resolveu se tornar viajante profissional nunca mais ninguém me disse que eu estou bonita. E que não preciso de dieta!

- Olha, obrigada (droga, estou gaguejando), mas e o ovo, com quem fica?

- Eu peguei primeiro, fica comigo.

Desisto. Ele tem razão. Ele foi gentil, legal em conversar comigo, também cria uma filha sozinha e eu não tenho o direito de ser chata ao ponto de tirar o ovo da filha dele. Vou procurar outra marca, explicar para minha princesa que acabou e ela vai entender, ela é muito inteligente, vai entender. Pelo menos vou comer um ovão inteiro com ela sem culpa. Puxa, estou bonita.

- Mas olha… o ovo tem duas partes, se você quiser, podemos dividir – ele disse.

- O quê? Dividir o ovo? Mas como as meninas vão entender se chegarmos com metade de um ovo de chocolate melecando nossa mão e…

- Vai almoçar lá em casa, leve sua filha e na hora de darmos o ovo, entregamos o mesmo para as duas. São meninas, têm quase a mesma idade, vão se dar bem. De quebra, levamos outros ovos para elas não se sentirem prejudicadas. A proposta é boa.

Tão boa que eu, sem o menor pudor de mãe com uma certa idade nos ombros, aceitei. Deixei a menina no carro e toquei a campainha para sentir o clima da casa. Uma senhorinha atendeu, eu reconheci como a costureira da minha tia e a partir dali foi só festa. Eu e Elianinha entramos, as meninas dividiram o ovo da Barbie, ganhei um ovo de chocolate branco do David (ele tem nome), levei um prato de bacalhau e parecia que nos conhecíamos de tempos.

A divisão de ovos virou tradição que não conseguimos mais quebrar. Todos os anos é a mesma coisa, as meninas pedem o mesmo ovo e dividem na nossa frente, cada uma come sua metade e ainda evitamos desperdício, porque eu como o ovo que ganho sozinha, em um só dia. Afinal, dieta a gente pode voltar a fazer depois. E ele ainda me acha bonita.

BOA PÁSCOA!

Alegrias,
Fernanda.

Ficção – Escolhas de Deise

segunda-feira, outubro 27th, 2008

Quando era criança, não pensei em ser outra coisa que não mulher casada. Conheci o Henrique quando tinha 17 anos e me apaixonei perdidamente – mas perdida fiquei quando resolvi casar. Na verdade, nunca saberei se foi amor, porque antes dele só havia paquerado o vizinho, que tinha 10 anos a mais e me achava uma menina (o que, de fato, eu era). O Rique tinha quase a minha idade, trabalhava com o pai em uma construtora e tinha muito dinheiro. Na verdade, o pai tinha muito dinheiro. Para meus pais, era o Rique um afortunado endinheirado.

Estudei até o terceiro ano do colegial e Rique, que não pensava em fazer faculdade, não me incentivou a cursar uma também, afinal, não iríamos precisar. Com aqueles olhos verdes, ele me conquistava a obedecer. Eu apenas dizia sim e pronto, se ele estava feliz, eu também estava. Assim, nós casamos quando eu completei 18 anos e fomos morar em uma das casas de seus pais. Uma das muitas que eles tinham.

No começo, eu era feliz. Eu acho que era feliz, porque se aquilo não era felicidade, eu não sei o que pode ser e me sinto constrangida em pensar que posso nunca ter sido feliz de verdade antes de agora. Mas até chegar agora muito passou.

Rique chegava tarde em casa e eu tinha empregados para fazer tudo por mim, mas como não trabalhava, eu mesma me aventurava na cozinha para preparar o jantar que, aliás, ele quase nunca comia.

Logo veio o Riquinho. Eu não queria esse nome, mas como tudo na vida, não parei para discutir. Ele quis colocar seu nome no filho, estava tudo certo, então. A Regina veio logo em seguida. Os dois não tinham nem um ano de diferença e por muito tempo eu esqueci de mim. Era como se eu não existisse. Rique voltava cada vez mais tarde e as poucas vezes em que eu saía era para eventos de sua empresa. Quando ele dizia que eu podia ir. E eu nunca questionei.

Meus filhos cresceram, foram para a escola e eu tinha orgulho daquelas duas criaturas. Minha vida era dedicada a eles e ao meu marido e era uma boa vida, uma vida confortável. Até que, um dia, num daqueles dias em que o Rique chegava tarde, eu disse que prepararia um lanche enquanto ele tomava banho. Encontrei uma mancha de batom no colarinho da camisa, aquela coisa clichê-ridícula-que-parece-mentira. Mas era verdade. O meu marido “perfeito”, aquele que todos diziam que era um presente dos céus, era um traidor mentiroso.

Quando mostrei a camisa, do lado de fora do Box do banheiro, ele desligou o chuveiro, enrolou uma toalha no corpo e disse apenas Não comece com sermão. Que ótimo, eu tinha acabado de descobrir uma traição e meu companheiro me mandava não começar com um sermão? Completou que não queria lanche nenhum e ia dormir. Foi para a cama como se nada tivesse acontecido. E passei aquela noite no banheiro chorando. E imaginando onde eu estava? Aquela Deise de 17 anos tinha morrido e todos os meus sonhos tinham ido junto para a cova.

No dia seguinte, quando saí do banheiro, ele já tinha ido embora para o trabalho e levado as crianças para a escola. Na hora do almoço eu as busquei, passamos em casa para arrumar as malas e disse apenas para que confiassem em mim. Sem despedidas, sem explicações, sem gritos ou desespero, escrevi uma carta com a palavra Adeus e deixei sobre a cama. Fomos embora para a casa dos meus pais. Eu não tinha casa. Nem a casa era minha. Por anos eu vivi os sonhos do traidor, as vontades dele no ambiente dele.

Em poucos dias eu aluguei uma casa e instalei as crianças no mesmo bairro para que pudessem ficar perto dos avós. E percebi que não queria pensão porque não desejava nada que vinha daquele homem. Nada. Se eu não tive amor por quase 10 anos, não seria agora que iria pedir dinheiro.

Na primeira visita ao mercado eu percebi que nem sequer sabia mais do que eu gostava. Não sabia qual comida comprar e nem mesmo qual pasta de dentes escolher. A prateleira me mostrava um mundo de possibilidades que eu nunca tive. Pela primeira vez, eu poderia escolher. Nem que a escolha fosse pelo mais barato. Era a minha escolha e eu dei muito valor.

A única coisa que eu sabia fazer era comida. Por causa dos meus treinos naquela cozinha com duas cubas, um metro de pia de granito para abrir as massas, um fogão de seis bocas e todos os utensílios mais bonitos que se via em revista, eu aprendi a me virar com um fogão vagabundo que comprei usado, uma pia minúscula e itens de plástico do mercadinho. E comecei a entregar marmitas.

Em pouco tempo, tive que contratar uma moça para me ajudar. Colocamos na porta da casa alugada uma placa que dizia Cozinha da Deise e instalamos mesinhas no quintal. A clientela cresceu e eu abri um restaurante. Eu podia viver sozinha. Meus filhos cresceram e aos 17 anos Regina conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Foi naquele dia que eu tomei uma decisão. Iria conversar com ela como nunca tinha feito em toda a nossa vida.

Eu não vou proibir nada, minha filha. Muito pelo contrário, porque namorar é saudável. Mas não cometa uma loucura. Vá estudar, vá se divertir, sair com suas amigas, aprender um ofício e então você poderá pensar se quer se juntar a alguém. Eu vou te contar a minha história, filha… e a decisão, depois, será sua.

Regina casou-se aos 30 anos com o mesmo rapaz, depois de anos de namoro e os dois terem concluído a faculdade. Hoje eu sou uma mulher ocupada. Além da minha rede de restaurantes, que estão espalhados por todo o país, ajudo a cuidar dos meus dois netos, um de cada filho. Tenho um namorado, mas não quero mais casar. Em compensação, quando vou ao mercado hoje em dia, eu sei exatamente o que comprar. O que eu gosto, o que eu quero. Hoje, aos 55 anos, eu sei quem eu sou, pela primeira vez na vida.

Ficção – Identidade

quarta-feira, junho 4th, 2008

ELA – Acho que estou com crise de identidade.

ELE – Crise de quê?

ELA – Identidade.

ELE – Ah, tá.

(silêncio)

ELA – Você ouviu?

ELE – Ouviu o quê?

ELA – Como ouviu o quê?

ELE – Ah, da crise. Ouvi.

ELA – E não vai dizer nada?

ELE – E tem alguma coisa para dizer?

(silêncio)

ELA – O meu problema é você.

ELE – Ei, não me meta nessa história.

ELA – É você, sim.

ELE – Não tenho nada a ver com a sua identidade. Ou falta de identidade. Ou sei lá o que você quer dizer com isso.

(Amália inquieta)

ELA – Me diga: qual é a minha cor preferida?

ELE – O que a sua cor preferida tem a ver com o seu problema de cabeça?

ELA – Não é de cabeça. É de identidade.

ELE – Dá no mesmo. Mas é azul, por quê?

ELA – A SUA cor favorita é azul.

ELE – A sua também.

ELA – Não, é a sua. Esse é o problema.

ELE – Tem algum problema em gostar de azul?

ELA – Adalberto!

ELE – Ou problema em você gostar da cor que eu gosto?

(indignada)

ELA – Adalberto!

ELE – Não entendi.

(silêncio)

ELA – Somos casados há vinte e dois anos e você não sabe a minha cor preferida?

ELE – Você me disse que era azul. Deve ter dito, sei lá, quando namorávamos.

ELA – Você é quem gosta de azul.

ELE – Você também.

(longa pausa)

ELA – O problema é meu.

ELE – Eu não sei qual é o problema, mas há um minuto ele era meu.

ELA – Vamos, agora responda: qual é a comida que eu mais gosto?

ELE – Não é possível. Você endoidou, Amália.

ELA – Dá para responder?

ELE – Picadinho.

ELA – Claro, picadinho.

ELE – Viu?

(irritada)

ELA – Picadinho é a SUA comida preferida. Não agüento mais comer picadinho. Para ser sincera, eu nunca suportei comer picadinho. Eu detesto picadinho. Eu sempre detestei picadinho! Pior do que o meu picadinho, só o picadinho da sua mãe.

ELE – Você me disse…

ELA – …esqueça o que eu disse! Abra bem os ouvidos a partir de agora: De-tes-to picadinho. Entendeu?

ELE – Entendi. Mas…

ELA – É, o problema é mesmo meu. E é meu desde que eu permiti que você ditasse as regras. Que você impusesse o que você gosta como regra geral. Que você determinasse o que eu mesma gosto. Adalberto, eu não sei mais do que eu gosto. Eu sei que a minha cor preferida não é o azul e que jamais colocaria picadinho em meu cardápio se não fosse para agradar você. Só isso.

ELE – Eu sempre achei que você gostava de picadinho. E da cor azul. Lembra que eu te dei uma saia azul que você adorava?

ELA – Não, eu não adorava. Para ser sincera, sequer gosto de saias. Eu prefiro as calças, porque me deixam mais à vontade e me sinto mais bonita. E aquela saia azul era brega.

ELE – Você usou a saia diversas vezes, Amália.

ELA – Sem gostar. Essa é a verdade. Desculpe.

ELE – (olhando para o teto) Eu nunca entendi muito as mulheres, mas agora entendo menos ainda.

ELA – Como você não me entende? Você nunca percebeu que eu não comia picadinho com a mesma vontade que eu comia carne mal passada?

ELE – Carne mal passada? Nunca fizemos carne mal passada em casa.

ELA – Engano seu. Eu fiz algumas vezes, quando as visitas vinham. Mas a sua era bem passada, como sempre.

ELE – Pensei que você também preferia a carne bem passada.

ELA – Pois não. Não mesmo.

ELE – Então por que comia?

(Amália abaixa a cabeça e muda o tom de voz)

ELA – Não sei. Esse é o problema.

ELE – Primeiro o problema era meu, depois era seu e agora você não sabe a quem ele pertence?

ELA – Mais ou menos isso.

ELE – E para que você precisa saber disso agora? Não está tudo bem?

ELA – Como pode estar tudo bem depois que eu descobri que perdi minha identidade?

ELE – De novo o papo da identidade…

ELA – Você sabe me responder qual é o presente que você me deu e que eu mais gostei até hoje?

(pensativo)

ELE – Hummm… aquele par de brincos de diamante.

ELA – Sem dúvida foi um belo presente. Bonito, de bom gosto e que todas as pessoas elogiaram. Mas o que eu nunca me esqueço foi quando eu quebrei os dois pés, você se lembra disso? (risada). Eu me lembro com carinho daquela época. Porque eu estava com os pés quebrados e em todos os dias você nunca se esqueceu de me trazer um bombom e uma rosa. Naqueles dias você fez o jantar para mim e jantamos juntos na cama. Foram os seus melhores presentes.

(Adalberto fica atônito)

ELA – Você não sabe nem que eu sou, depois de tantos anos juntos. Simplesmente porque eu mesma não sei quem eu sou.

ELE – Você é a mulher que eu amo.

ELA – De qual jeito você me ama? Assim, com os seus gostos, ou com os meus próprios? Você não sabe quem eu sou para me amar. Eu me transformei em alguém que não recorda os próprios gostos.

(Amália sai e volta com uma mala)

ELA – Preciso ficar sozinha.

ELE – Amália, o que significa essa mala? Por que você precisa ficar sozinha? Você vai voltar?

(Amália abre a porta)

ELE – Mas… Mas… Para onde você vai?

(Amália olha e sorri)

ELA – Procurar minha identidade.

(Amália bate a porta e sai).

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Alegrias,
Fernanda.