Ficção – Quase vida de Marli

No dia seguinte ao seu aniversário de 42 anos, Marli decidiu acabar com a sua vida. O dia anterior tinha sido um dos mais solitários de que se lembrava, embora as memórias não fossem tantas. Sem pais, filhos, irmãos os tios, Marli passou horas deitada no sofá ouvindo o mesmo CD repetidas vezes, com o telefone sem fio na mão, mas o aparelho não tocou nem uma única vez. No ano anterior recebeu parabéns dos colegas de trabalho. Os abraços frios e sem sentimento não valeriam de nada para uma pessoa com amigos; para Marli, tinham um significado de existência.

O melhor era acabar com tudo naquele domingo. Marli não imaginava mais alguns anos de completa ausência. Ela não era infeliz, apenas não era nada. Tinha um bom emprego, um cargo importante em uma empresa respeitável, um salário que seria maior do que todas as suas amigas caso tivesse amigas, um apartamento confortável em uma cobertura de bairro calmo e residencial e uma saúde de ferro. Se esperasse um fim normal, seriam anos de completo nada. Marli precisaria agir.

O aniversário foi a última esperança e Marli já dormiu com a certeza dos acontecimentos do dia seguinte. A primeira decisão foi escolher a roupa: um vestido preto. No fundo do armário, encontrou um álbum de fotografias. Tinha mania de escolher as melhores fotos de cada ano e colocar em um único álbum. Casou-se e separou-se três vezes e em nenhuma delas teve coragem de jogar o álbum fora. Ali ela tinha uma quase vida.

O último casamento de Marli poderia ser resumido em um erro. Em nenhuma das fotos ela aparecia sorrindo. Foi então que ela percebeu que os mais bonitos lugares visitados não interferiam no semblante sem alegria. Marli aparecia, no máximo, com um sorriso de lábios cerrados. Justo ela, que gostava dos seus dentes. Marli sempre ouviu, quando criança, sobre o seu sorriso perfeito. Talvez o ciúme doentio do último marido ou a falta de vontade de ser vista pelo mundo a tenham feito esquecer que havia algo em si mesma que ela apreciava.

As fotos das primeiras páginas do álbum remeteram Marli à história com o primeiro marido, com quem se casou muito jovem e de quem se divorciou quando acreditou estar apaixonada pelo segundo marido. Marli pensava que o amor era feito de aventuras diárias, loucuras cometidas pela paixão e surpresas todos os dias. Com o primeiro marido ela tinha uma rotina agradável e feliz. Com o segundo, um sentimento arrebatador que era tão forte como as mãos pesadas daquele que dormia em sua cama. Conheceu o terceiro marido em um consultório, quando tentou se tratar de algo que pensava que tinha, mas poderia muito bem ser apenas desilusão.

Lembrou que as únicas risadas verdadeiras tinham sido dadas com aquele que ela dispensou. O primeiro não lhe proporcionava loucuras, mas trazia flores quase todos os dias. Colhia no quintal e entregava com um beijo. Escrevia poesias em guardanapos e deixava bilhetes no espelho. Marli percebeu somente anos depois que fora amada. Ironicamente, quando tudo estava quase no fim.

Com o vestido preto sobre a cama, buscou a caixa de remédios e segurou-a por um longo tempo. No colo, o álbum recebeu uma única lágrima. No momento em que o telefone tocou.

Não reconheceu a voz, mas ele pediu desculpas por não ter ligado no dia anterior. O atraso era pequeno, mas os votos de felicidade ainda valiam. Mas tanto tempo sem nos falar, por onde andava? Casei, separei, tive uma filha e estou sozinho. E você? Casei, separei e foram três vezes, mas não tive filhos. Trabalho naquele mesmo lugar, mas a função é outra. Coincidência, eu também. Não me esqueci do seu aniversário nem um dia em todos esses anos, vamos nos ver? E Marli disse sim. Sem saber o motivo, apenas disse sim e combinou o dia como sendo aquele, o horário para dali a poucos minutos.

O vestuário não era mais apropriado. Jogou no chão o vestido preto, no lixo a caixa de remédios e guardou no mesmo lugar do armário o álbum de lembranças. Ali, nas primeiras páginas, estavam as fotos do homem que iria encontrar em pouco tempo e a quem agradecia ter mudado seus planos. Quando Marli pensou que a estrada acabaria, tudo voltou ao início. E esboçou um sorriso aberto e encantador.

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