Archive for the ‘Ficção-Contos’ Category

O conto de Natal

quarta-feira, dezembro 22nd, 2010

O conto é de alguns anos atrás, mas continua valendo pela mensagem de Natal. Se você já leu, é a chance de relembrar. Ou se ainda não leu, pode conhecer a divertida história de Janaína. Espero que gostem!

Alegrias,

Fernanda.

O Natal de Janaína

Por Fernanda França*

Eu preciso comprar um presente para a filha do meu namorado. Aquela menininha mimada que, no último Natal, chamou a boneca que eu comprei de ridícula e enfiou o presente dentro da privada. É claro que eu, doce como um marmelo, acolhi a pequenina nos meus braços e disse que tudo ficaria bem, que depois compraríamos outra boneca, mesmo sabendo que ela não queria. Uma menina de nove aninhos já sabe o que diz e é para ela que eu preciso escolher um presente de Natal, porque o Beto não quis vir para o shopping comigo. Droga, e agora, o que eu vou comprar?

Uau! Promoção compre-um-leve-dois naquela loja bacanérrima. Se eu levar um vestidinho pra molequinha, eu posso ganhar um presente pra mim. Nossa, mas esse shopping está um inferno. Também, por que eu escolhi vir aqui justo na véspera de Natal? Todo mundo teve a mesma ideia? Preciso comprar o presente da enteada, do Beto, da minha tia que teve neném, do pai e da mãe – lembrando que eu terei que passar na casa do pai às dez, da mãe às dez e meia, da tia às onze, da vó do Beto às onze e meia e torcer para que antes da meia-noite eu esteja longe de lá.

(mais…)

Qual o seu conto preferido?

quarta-feira, maio 19th, 2010

Povo, posso contar com vocês para uma votação? É para um projeto, então quero a opinião de quem mais importa. Quem, quem? Vocês, leitores! :-)

Vejam os contos aqui: http://fernandafranca.com.br/contos/

E respondam a pesquisa abaixo, por favor (se puderem até sábado).

Qual o seu conto favorito? Veja aqui http://fernandafranca.com.br/contos/

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Vale me desculpar porque não foram revisados de acordo com a nova ortografia. Sequer foram revisados, cof cof. Mas sejam bonzinhos com a Fê e ignorem isso, leiam a “alma” do conto, hehe.

Muito obrigada pela atenção. E voltem sempre ;-)

Alegrias,

Fernanda.

PS: Quem quiser acrescentar algo a mais, o motivo de ter escolhido o conto, enfim, os comentários tão aí, minha gente :-)

O Ano Novo de Lucinha

quarta-feira, dezembro 30th, 2009

Eu tenho uma novidaaaaaaaaade!!! Mas só vou contar no ano que vem, ha-ha-ha. Tá, não resisti à piada. Mas é verdade. Estou louca para contar, mas acalmem os ânimos que o novo ano está logo aí, pra dar sorte. Por enquanto, fiquem com o conto de Ano Novo (é do ano passado, mas é novo). Para reler ou para ler, especialmente àquelas novas leitoras do blog e já tão bem-vindas. Espero que curtam, porque é um dos contos de que mais gosto. E até daqui a pouco que ainda tem mais esse ano.

Alegrias,

Fernanda.

O Ano Novo de Lucinha

Atchim. Eu esqueci. Sou uma imbecil, como é que pude me esquecer? E agora, e se eu ficar doente? Eu posso sentir, o nariz começou a fungar, os olhos estão ardendo e eu sei que a culpa é minha, só minha, porque esqueci daquele remédio de cor laranja. Eu tomei o verde, que fica no meu criado-mudo, o azul e o cor-de-rosa que estão na cozinha, mas esse laranja eu deixo na sala para tomar na hora em que eu ligo a TV para tomar o café, mas hoje eu não quis café, não liguei a TV e não tomei justo o comprimido para a alergia. Ela não me deixa em paz, essa alergia me deixa com nariz de palhaço, mas aqueles palhaços vagabundos de festa de criança em escola, sabe? Aquele que tem nariz de plástico comprado no camelô mesmo. E eu fico assim, todo mundo me olha na rua. Eu sei que é para mim.

O mais importante é que eu nunca me esqueço do cor-de-rosa. Isso porque, bem, é menos complicado ficar com alergia do que ter um ataque do coração porque a pressão subiu. Eu não tenho mania de remédio e nem acho que tenho todas as doenças do mundo, eu simplesmente tenho todas essas doenças mesmo. Não, tá, é verdade, nem todas, mas e se eu puder evitar algumas é bem melhor, não é? Atchim. Ai, meu nariz. É o cachorro da vizinha, ele me dá alergias, é um horror aquele monte de pêlo em todo lugar da casa, ai que nojo, pode dar coceira e doença de pele. Mas eu não tenho doença de pele. Só alergia mesmo. Talvez.

Saio de casa e passo na farmácia, só para comprar uns itens de higiene pessoal… Ai, que maravilha, os antigripais estão em promoção. Não que eu precise, mas e se o espirro não for alergia e eu estiver com princípio de gripe? Pode ser, não fará mal. Opa, é a Mariazinha do segundo andar, ela está aqui também, uau, ela comprou uma camisinha sabor morango. Eu nunca usei uma camisinha sabor morango. Na verdade, eu não transo há alguns meses, nem preciso disso. Não muitos meses, só alguns… tipo, uns cinco ou seis. O meu último caso nem tomava vitamina C. Eu não posso ficar com um cara que nem toma vitamina, ele é um potencial cliente de hospital. Sem chance. Mas me deu vontade de achar alguém para experimentar a camisinha de morango.

Aí me escondo atrás da prateleira de xampus, encontro ao lado uma gôndola com remédios para dor e me lembro que tenho sentido uma dor chata nos pés quando ando muito. Não é normal. A Cida me disse que se andamos muito, sentimos dor, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não é, não comigo. Atchim. Ah, sim, e tem ainda a pílula laranja, eu vou levar mais uma caixa e deixar um pouco no criado-mundo e outro pouco na cozinha, para o caso de eu resolver não ver TV em alguns dias na hora do café.

A cidade está em festa, mas grande coisa é o Ano Novo. Mais um dia, vira o calendário e puf, é o novo ano que chegou, não faz a menor diferença. Eu não vou renascer num dia. E caminho de volta pra casa pensando que milagres não existem e que, sinceramente, usar branco é a maior babaquice. Branco, que cor sem graça. E festa pra quê? Eu vou passar em casa, vou assistir ao especial de fim de ano e aproveitar os dias de recesso no trabalho.

- Au.

- Ãh?

Um cachorro no meu pé. No meio do caminho para casa, lá estava, no meu pé, um cachorro vira-lata com olhar carente. Atchim.

- Sai. Sai.

- Au au.

- Sai, cachorro.

- Au.

- Não, isso aqui não é comida, é remédio. Coisa séria, cachorro, coisa séria.

Eu não sei, mas ele me pareceu bastante interessado nos remédios. Abro a sacola, mostro que não há comida, continuo andando, mas o fedido vem atrás de mim. Cachorro estranho, nem me conhece. Atchim. Viu, é ele. É esse cão sujo que atacou a minha rinite alérgica. Sai, passa, anda, vai embora. Ah, não quer ir? Tá bem, vai andar até se cansar, porque eu não vou mais falar com você, está certo? Não falo mais. E já são seis passos na calçada. Toc toc toc toc toc toc. Como é que um animal pode ser tão persistente?

Ele está me irritando. E o jeito como ele olha para mim é… é tão… tão… carente. Será que ele tem uma casa? Não parece, está sujo e acho que tem pulgas, exala um fedor, não tem coleira e se coça o tempo todo. Credo, deve ter um monte de outras doenças. Ou não. Ele pode só estar sujo… e com fome. Puxa vida, eu não sou assim tão má…

Quer um comprimidinho, cachorro? Sério, se você quiser, te dou um dos complexos vitamínicos, acho que pode te fazer bem. Você parece meio fraquinho, acho que vai precisar de comprimidos por uns dias.

Slurp.

Ai, meu santo protetor dos animais fedidos de rua, me ajude! Esse porco me lambeu, e se eu pegar uma doença? E se ele me transmitir alguma coisa muito séria com essa lambida molhada? Não, pensando bem, não. Tá com fome, é? Melhor não te dar isso aqui, acho que vai precisar de outra coisa, mas… longe de mim, tá? Eu compro, você come e se manda, combinado?

- Au

- Então tá.

Nossa, quanta coisa legal existe numa pet shop. Mais divertido do que uma farmácia. Eu posso levar a ração e ainda uns potinhos para colocar água, depois um sabonete próprio para cães, um lacinho de cabelo. Azul ou rosa? Vou levar amarelo. E então uma loção, uma caminha bonita com babados, um osso para roer, um brinquedinho, uma bolinha e tem esse aqui, ai que lindo, posso levar dois desse…

Atchim. Não cumpri minha promessa. Ele entrou em casa, eu dei um banho, coloquei comida e em poucos minutos ele dormia no meu colo. No meu colo! Puxa, que bonitinho. Ele respira de maneira tão calma e o focinho está úmido… hahaha, você me fez cócegas com esse focinho! Que fofo. Talvez ele possa ficar hoje e amanhã eu o levo para a casa de alguém ou talvez ele possa ficar, se não atrapalhar. Eu acho que ele pode ficar. É, acho que pode.

Foi o primeiro Ano Novo que passamos sozinhos. No ano seguinte, ele já tinha uma irmã canina e eu já tinha um namorado, que conheci quando levava o Lobo para passear – o meu namorado levava a Flor e os filhotes se conheceram, blábláblá, eu acho que meu namorado armou aquilo tudo, eu acho, mas foi lindo e fingi que não percebi. Passei a usar branco que, afinal, nem é uma cor tão sem graça assim e os Réveillons começaram a ser cada vez mais divertidos.

A minha vida mudou e eu passei a esquecer os comprimidos e perceber que não precisava tanto deles assim. Hoje só volto à farmácia para itens básicos de higiene, um ou outro comprimidinho essencial e, bom, por causa da camisinha de morango.

O Natal de Janaína

quarta-feira, dezembro 23rd, 2009

Pessoal,

Sério que já chegou outro Natal? Caramba, esse ano voou. Agradeço a todos os leitores que continuam sempre vindo e as pessoas novas, que chegaram recentemente nesse cantinho e me deixam muito feliz. O conto que deixo abaixo é o do ano passado, mas é um presente para todos que chegaram há pouco tempo e ainda não o leram. Espero que gostem. Nos próximos dias estarei com a família, mas sempre que puder, passarei por aqui. Lembrem-se que o fato de estarem vivos e com saúde já é mais do que motivo suficiente para agradecer ao Papai Noel. Ele não existe? Tem certeza? E se for todo o sentimento bom do mundo? O carinho, a amizade, a caridade? E se o bom velhinho for os votos de felicidade, a alegria, o desejo de fazer um ano próximo melhor? Então ele existe, sim. E não vamos deixá-lo morrer.

Um Feliz Natal a todos!

O Natal de Janaína

Eu preciso comprar um presente para a filha do meu namorado. Aquela menininha mimada que, no último Natal, chamou a boneca que eu comprei de ridícula e enfiou o presente dentro da privada. É claro que eu, doce como um marmelo, acolhi a pequenina nos meus braços e disse que tudo ficaria bem, que depois compraríamos outra boneca, mesmo sabendo que ela não queria. Uma menina de nove aninhos já sabe o que diz e é pra ela que eu preciso escolher um presente de Natal, porque o Beto não quis vir para o shopping comigo. Droga, e agora, o que eu vou dar pra ela?

Uau! Promoção compre-um-leve-dois naquela loja bacanérrima. Se eu levar um vestidinho pra molequinha, eu posso ganhar um presente pra mim. Nossa, mas esse shopping está um inferno. Também, por que eu escolhi vir aqui justo na véspera de Natal? Todo mundo teve a mesma idéia? Preciso comprar o presente da enteada, do Beto, da minha tia que teve neném, do pai e da mãe – lembrando que eu terei que passar na casa do pai às dez, da mãe às dez e meia, da tia às onze, da vó do Beto às onze e meia e torcer para que antes da meia-noite eu esteja longe de lá.

Shopping lotado, meu salto quebra. Sem tempo para pensar no que fazer, eu arranco a pontinha quebrada, guardo na bolsa para colar depois, entro na primeira loja que encontro e compro um par de sandálias de dedo bem lindonas cor-de-laranja. Tudo bem que estou de terninho verde, mas era a única do meu número. O importante agora é comprar os presentes. Mas por que mesmo o Beto não quis vir? Ele nunca quer vir a lugar nenhum comigo. Chato.

Comprei os presentes e ainda tenho tempo para fazer uma escova, as mãos, os pés e voltar lindona pra casa, a tempo de colocar um vestido para começar a maratona do Natal. Coisa boa essa vida, eu pareço uma maloqueira que enfiou o pé numa mexerica e meu cabelo oleoso já grudou na testa. Mas é hora de ir embora, ir embora, ir embora, até que… opa, é o Beto. É o Beto, eu sei que é o Beto, o que ele faz aqui? Ai, será que veio comprar meu presente? Que legal, que legal, o que será que eu vou ganhar? Mas, opa, quem é aquela mulher com ele? E eles… tão beijando na boca?

Legal. Gastei todo o meu décimo terceiro salário com presentes para um namorado que passeia com a amante no shopping bem na véspera de Natal. Deve ser uma vagabunda. Mentira, ela parecia uma princesa. Droga, uma mulher bonita ainda por cima, toda chique, vestida de marca dos pés à cabeça. E eu quebrei o salto, estou com roupa de trabalho, cabelo sujo, lotada de sacolas. Merda de vida. Justo hoje que eu estava tão aberta com espírito natalino para aceitar a filha dele. Justo hoje ele me apronta uma dessas. Vai ter que devolver cada centavo que eu gastei.

Vaguei pelo shopping. E agora, o que eu faço? Eu posso deixar os presentes na casa dele, com um recado ameaçador, do tipo “eu sei o que você fez com sua namorada, pague uma grana que eu calo a boca”, assim resgato o que gastei, ou posso chegar no meio da festinha de Natal e surtar, dizer um monte de coisas que sempre quis dizer à família dele, ou ainda…

- Ho ho ho

Era só o que me faltava. O Papai Noel.

- Ho ho ho, minha filha!
- Pô, Papai Noel, hoje não é um bom dia.
- Mas é Natal. Coloque um sorriso no rosto!
- Dá pro senhor ir pro outro lado? Pra lá? Mais pra lá? Vai, assim, tchau…
- Uma moça tão bonita assim mal humorada?
- Olha, eu tô bem humorada, se considerarmos o que aconteceu.
- Desabafa com o Papai Noel.
- Fumou maconha, Papai Noel?
- Abra seu coração.
- Já abri a carteira, que foi mais difícil. E um espaço na cabeça para os galhos. Posso até ser uma de suas renas, bom velhinho.
- Opa, menina, calma, calma… Quer um presentinho?
- Vai ser o primeiro que vou ganhar.
- Se conseguir adivinhar o que eu tenho na minha mão, leva um beijo nesse bocão.
- Papai Noel!!!
- Ahááá. Te peguei.

Não acredito que eu desabafei com ele. Quando o Murilo tirou a barba, eu já percebi que era ele. Ainda com gorrinho e cabelo branco, saco vermelho nas costas, barriga de mentira, óculos de metal, eu sabia que era ele. E o danado me enganou. Meu ex-namorado.

- Seu crápula.
- Que recepção nada calorosa, Jana.
- Você não é o Papai Noel!
- Claro que não. Ele não existe, não te contaram?
- Mas é que… eu te disse…
- Da galhada? Esquenta, não, se foi aquele mané do Betão, ele bem que não te merecia. Você precisa de algo bem melhor.
- Valeu.
- Tipo o Papai Noel – ele disse, com uma piscadinha.
- Tô indo.
- De quem são esses presentes?
- Eram. Não são mais. Só tem um vestidinho que ganhei na promoção porque comprei outro, mas o resto não tem dono.
- Tenho uma idéia. Você topa?
- Primeiro conta pra ver se eu topo, né.

E então naquele Natal eu não fiz nada do que havia programado. Não estive na casa do pai às dez, da mãe às dez e meia, da tia às onze, da vó do Beto às onze e meia e nem tive que torcer para sair cedo de lá. Não fiz escova, mão, pé, nem tomei banho. Saí do shopping direto para uma festa de crianças em um orfanato, que ganharam alguns presentes lindos e novinhos. Depois ainda fomos a um asilo, onde ficaram os outros presentes. Murilo tinha muito mais no carro, a minha contribuição foi bem pequena. Mas eu senti a alegria de estar ao lado dele e ver cada sorriso que recebia. Eu fui a assistente do Papai Noel mais bacana que eu já conheci, que ganhava no shopping, e gastava em presente para quem precisava.

- Obrigada, duende. Você é ótima ajudante.
- Também, com um Papai Noel como você…

Silêncio.

- Murilo, dá pra tirar a barba antes de me beijar?
- Opa, esqueci!

E eu me senti linda, amada, querida, tão feliz que nunca pensei que Natal pudesse ser tão legal. E continua sendo, todos os anos.

Feliz Natal!
Alegrias,
Fernanda.

“Axensorista”

sexta-feira, junho 5th, 2009

Escrevi este conto aos 17 anos, foi meu primeiro conto ou, como dizia um professor da faculdade, uma crônica reflexiva. Foi ele que, após ler, me chamou para o primeiro trabalho freela na mídia impressa. Grande mestre. E então esse conto ou crônica, que já completa 13 anos, tornou-se o símbolo do meu início na literatura, de certa forma. Meu primeiro escrito de gente grande, sabe? Compartilho com vocês e espero que gostem.

Alegrias,
Fernanda.
PS: Nada foi mudado daquela época, apenas o valor em reais para acompanhar o parco aumento do salário mínimo nesses anos.

“Axensorista”

“Ou eu não me chamo Maria”… continuava a senhora a repetir. Eram frases curtas seguidas do mesmo fim, e eu já estava mesmo duvidando de que ela se chamasse Maria. Porque parece impossível que tal criatura consiga realmente realizar os feitos aos quais se referia, por mais insignificantes que parecessem a um ser humano normal, assim como eu, assim como nós todos. Mas ela sonhava, e sonhava alto para sua vida medíocre, baixo para uma outra vida qualquer.

Conheci Maria no ônibus. Aqueles ônibus lotados que se pega para ir para casa e que servem como motivo de um bom cochilo. Sentei no mesmo lugar de sempre e esta senhora sentou-se ao meu lado. “Isso porque essa lata velha está vazia hoje. Fui premiada com uma companhia”. Era mesmo muita emoção, que até fechei os olhos fingindo dormir. Mas Maria, até então por mim desconhecida, começou a falar.

“Pra sinhora vê, nove hora da manhã e eu tô indo lá no lugar da mocinha que num podia ir. E eu que tenho que ir! Eu ainda saio desse emprego ou não me chamo Maria”… Eu não tinha reações, acho que temia que ela me procurasse como confidente cada vez que me encontrasse no ônibus. Mas o fato foi que não importava o que estivesse fazendo, Maria queria falar. E o fazia. Descobri então que era funcionária de limpeza (“a chefe delas, sabe, dona?”) e que a mandavam para diferentes lugares quando alguma outra funcionária faltava, apesar de este não ser o seu serviço. Ela me detalhou como eram suas manhãs e me confessou que às vezes tomava um golinho do café dos “poderosos” – mas quem iria notar? A pobreza era tanta que se sentia uma privilegiada, era a dona dos sacos de lixo que vez ou outra eram roubados por pessoas que ela nem imaginava. “Roubar saco de lixo, dona, vê que coisa!” Não via, mas imaginava.

O seu grande plano na vida era deixar de ser uma boa faxineira e, assim, ser despedida. Afinal, Maria não era boba, ela mesma dizia, e queria ganhar o que lhe era de direito. Depois? O futuro poderia ser brilhante e ela seguir seu grande sonho: Ser a’x'ensorista! Não que ela não fosse grata pelo serviço que tinha, longe disso, mas se ao menos ela ganhasse R$ 800… “Poderia estar rica e ter de tudo, mas salário mínimo, dona, é salário de fome”. Assim, me indagava pela primeira vez durante a conversa, ela queria a opinião de alguém, será que deveria mesmo ser despedida e seguir seu sonho? “Sabe, dona, eu sempre quis ser axensorista, tem uma amiga minha que é, eu quero ser também. Mas pobre não tem que querer nada, tem que comer. Daí eu tenho medo, porque eu vejo que tenho um sonho e não sei se posso seguir”.

“Não sei se posso segui-lo”… Eu nunca pensei em não poder seguir meus sonhos. Eu sempre os tive e nunca imaginei que alguém tivesse medo de seguir, o que na minha vida, é uma das coisas mais preciosas. Talvez porque eu tenha comida na mesa, cama quente, roupa lavada. Eu tenho luxo. Não o luxo das coisas, mas o luxo da esperança. O luxo que muitas pessoas não têm, o luxo de ter um sonho, por menor que seja, e ter esperança com ele. Foi aí então que percebi que sonhar é um presente, e esperar a realização é luxo. Há muito mais o que ser feito além de sonhar. Comer, ter lugar para morar… Direito? Mas quem se importa com isso! Maria se importa e, assim, continuava seu plano. Na verdade, um plano em busca do luxo, do grande luxo de realizar seu sonho.

Era minha vez de descer, mas quem diria, eu me entretia cada vez mais com seu discurso. Cheguei a aconselhá-la, disse somente que deveria fazer aquilo que achava o correto, seguir seu sonho, ser mesmo ascensorista. “Boa sorte, de coração”, dizia eu. “De coração, olha em que ponto cheguei”, pensava sorrindo. Ela se chamava Maria mesmo, e eu sei que vai conseguir.

O dia do trabalho de Rúbia

sexta-feira, abril 24th, 2009

Eu não acredito que tenho que trabalhar bem no dia do trabalho. Tudo bem que o dia é do trabalho, mas é feriado e podia estar na casa da praia. Não, da praia não porque praia me lembra o ex-marido e a essa altura o desgraçado deve estar lá com a nova esposa. E se estiver é problema deles, não é? Estou aqui trabalhando no meu escritório em casa, acabando uma tradução para um prazo que encerra amanhã. E não importa que é feriado, porque, oras, em alguma parte do mundo hoje não é feriado.

Login: rubia1970
Senha: luizito

Bem-vindo(a) ao bate-papo.
Digite seu nome: Rúbia Salmão
Sala: 35 a 45 anos
Estado: São Paulo

Acabei escolhendo a cidade onde moro, droga. Eu deveria escolher algum lugar bem longe daqui ou vou acabar encontrando no mundo virtual com quem não quero nem ver na vida real. E ainda por cima com o sobrenome do Luizito. Preciso trocar essa senha, preciso trocar todos os meus documentos que estão com o sobrenome que não é meu, era só dele e eu não quero como presente.

Mensagem particular de Cupido carente: Olá, sereia.
Rúbia Salmão: Que cantada barata.

O pior era ter de aguentar as piadinhas infames sobre o sobrenome de peixe que eu resolvi adotar. Onde eu estava com a cabeça quando decidi, por livre e espontânea vontade, colocar no meu lindo nome o sobrenome do Luizito? Não passaram nem três anos, os documentos estão recém-tirados e lá vou eu tirar tudo de novo. Por isso não fiz isso até hoje e desde que o traste foi embora eu só mostro o RG velho, aquele com foto do cabelinho curto e fita no cabelo quando eu tinha 16 anos.

Cupido carente: Sereia, está aí?
Rúbia Salmão: Estou.
Cupido carente: Como passou o feriado?
Rúbia Salmão: Não tive feriado, estou trabalhando.
Cupido carente: Agora não mais, está falando comigo :-)
Rúbia Salmão: Certo, estou conversando com vc.
Cupido carente: Vc tem o nome da minha primeira namorada.
Rúbia Salmão: É a segunda cantada pronta de hj.
Cupido carente: É sério, mas tudo bem…
Rúbia Salmão: Como vc se chama?
Cupido carente: Pode me chamar de cupido apaixonado.
Rúbia Salmão: Sei, e pq?
Cupido carente: Eu ajudo os amigos a se darem bem, mas ainda não encontrei a pessoa certa. :-(

Alguém pode me explicar por que eu só atraio cara maluco pra minha vida? Entre conversar com esse doido e acabar a tradução, eu deveria escolher a segunda opção, mas decidi me divertir um pouco mais.

Rúbia Salmão: Além de ajudar os amigos a encontrarem namoradas, o q vc faz na vida?
Cupido carente: Trabalho no dia do trabalho, como vc.
Rúbia Salmão: Que bom, somos dois :-)
Cupido carente: Estou preparando provas.
Rúbia Salmão: Vc é professor?
Cupido carente: De física.
Rúbia Salmão: Coitado (risos)
Cupido carente: Todo mundo diz isso… mas eu posso te provar que física é bem legal
Rúbia Salmão: Prefiro que vc me mostre outras coisas legais.
Cupido carente: Que tal meus dotes culinários?

Essa foi boa, um homem que cozinha era tudo de que eu precisava. Ainda mais depois do Luizito, que não cozinhava, não lavava e ainda deixava uma pilha de louça em cima da pia. Muita louça e garrafas de cerveja vazias.

Rúbia Salmão: Acho um bom prato de comida bem melhor do que estudar física.
Cupido carente: Depois de experimentar minha lasanha, vc seria capaz de assistir a uma aula sobre a força de atração entre os corpos?
Rúbia Salmão: (Risos)

TRIM

Rúbia Salmão: Um momento, telefone.

- Oi, Nanda!
- Rúbia, está ocupada?
- Estou num chat com um cara. Boa diversão para um feriado.
- Voltou à adolescência?
- Acho que voltei.
- E qual o nome dele?
- Cupido apaixonado.

Depois de muitos risos e algumas piadas, combinamos de almoçar juntas no dia seguinte.

Cupido carente: Kd vc, sereia?
Rúbia Salmão: Aqui, voltei. Não me chama de sereia, não, por favor. Esse sobrenome nem é meu.
Cupido carente: Está mentindo na rede?
Rúbia Salmão: Todos mentem na rede.
Cupido carente: Eu não minto.
Rúbia Salmão: Vc não mente pq não disse seu nome.
Cupido carente: Sou Pedro e moro perto da escola São José. Trabalho lá.
Rúbia Salmão: Nossa, deu o relatório completo. Não tem medo de eu ser uma maluca?
Cupido carente: Eu teria descoberto se vc é maluca… vc disse que não gosta de física, então é uma pessoa normal.
Rúbia Salmão: (risos) E vc tem o nome do meu primeiro namorado.
Cupido carente: Agora vc que resolveu usar a tática da cantada pronta.

Mas não era cantada. Nem da minha parte, nem da dele. Depois de uma conversa que durou duas horas e quarenta e cinco minutos, desconectamos do bate-papo e falamos ao telefone. Conversamos mais duas horas e combinamos de nos encontrar em um restaurante perto da escola. Desmarquei o almoço com a Nanda e fui almoçar com um desconhecido. Bom, não era exatamente um desconhecido.

Não foi tão fácil descobrir de onde nos conhecíamos, mas não foi difícil perceber que não éramos completos estranhos. Aquela voz, aquele jeito de colocar a mão no cabelo e até a risada eram iguais ao jeito que ele tinha aos 17 anos e quando eu era um ano mais nova. Foram cinco meses de namoro, eu jurava que nunca mais iria amar ninguém como o Pedro, mas os pais dele se separaram, ele mudou de cidade e não nos vimos mais. Não existia internet na época.

Ele casou, separou, voltou, eu casei, mudei, separei, voltei e nos encontramos no chat da nossa cidade. A lasanha que ele prepara é realmente boa, a lição sobre física eu não quis, apenas ficamos com a prática da atração dos corpos. Foram dois anos morando juntos até que ele propôs casamento. Eu não tinha a menor vontade de casar novamente, mas de repente mudei de ideia, nós adotamos uma linda menina e casamos no civil. Foi quando eu mudei de nome. Não adotei o nome do novo marido, só voltei a ser quem eu era, quem ele me conheceu, quando eu ainda tirava fotos de fita no cabelo. E acabei de uma vez com o Salmão, mas meu cupido, que não é mais carente, ainda me chama de sereia.

A Páscoa de Ana Cláudia

quinta-feira, abril 9th, 2009

Eu não gosto de chocolate porque irrita a minha pele e eu empipoco inteira. Mentira, eu amo chocolate, mas eu não posso comer porque engorda. Droga de dieta, ela só me permite comer 900 calorias por dia, mas desse jeito eu vou virar uma sopa ambulante, mas sopa sem batata e macarrão. Sopa de água, delícia gastronômica. Se eu comer apenas um ovinho de Páscoa inteiro eu ultrapassei todas as calorias do dia. Então decidi, eu farei isso pela minha filha, mas só por ela, por que como uma criança vai entender que a mãe não quer comer ovo de Páscoa na Páscoa?

Fiz as contas: posso ingerir todas as 200 gramas do ovo (que eu acho pequeno, porque eu sei que sou capaz de muito mais, eu conheço o meu potencial) e não como mais nada durante o dia. Eu acordo e tomo de café da manhã um pedaço de ovo. No almoço, um pedaço de ovo. No café da tarde, mais ovo, na janta ovo e eu não engordo nada, porque mantive as calorias do dia. Ah, é fácil seguir uma dieta.

A Elianinha quer um ovo de Páscoa da Barbie. Ovo não é de chocolate? A Barbie só vem estampada na embalagem, não é? Mas de que adianta tentar explicar? Não adianta. Pensei em fazer um ovo em casa e botar uma de suas Barbies dentro como surpresa. Perfeito, se não fosse pelo fato de que eu precisaria roubar uma embalagem. Desisti do plano e fui ao mercado comprar. Só que eu esqueci de que comprar em cima da hora não é a melhor estratégia. A Páscoa chegou e eu entro no terceiro mercado com esperança de achar o bendito ovo da Barbie, porque eles esgotaram nos outros lugares.

- É ele, é ele! – eu grito, para o nada.

- Ei, moço, esse ovo é meu! – exclamo quando vejo um homem colocando a mão no meu ovo. O último ovo da Barbie. – Devolve.

- Devolve? Como assim, devolve? Você nem estava com ele.

- Mas eu ia pegar, só que você chegou uns segundos antes de mim.

- Você ia. Eu peguei.

Que insolente esse homem. Que grande babaca. E que verdade, também. E agora, como é que eu explico que não posso chegar em casa sem esse ovo? E que nos outros mercados ele acabou, esse é o último da espécie? Melhor ser sincera.

- Eu não posso chegar em casa sem esse ovo.

- Sério? Nem eu – ele respondeu já andando em direção ao caixa.

- Mas senhor… moço… seu… é que eu não tenho mais onde buscar, a minha filha está na casa dos avós e se eu chegar sem esse ovo posso nem entrar lá.

Ele não respondeu, eu tinha que apelar.

- Não é fácil ser mãe solteira.

Ele parou. Funcionou. Mas poxa, eu não estava mentindo, não era bem uma chantagem emocional, era só… uma informação na hora certa, oras.

- Jura?

- Hum, hum – balancei com a cabeça e fiz um sorrisinho meigo.

- Também não é fácil ser pai solteiro e minha filha quer esse ovo. Tchau.

Ahhhhh como ele podia usar a minha técnica contra mim mesma? Isso é jogo sujo, é falta de criatividade.

- Ah, tá bem. Você é pai solteiro, então?

- Minha ex-mulher venceu a eleição para deputada federal, foi morar em Brasília, mas nunca mais voltou porque se arranjou com um senador. Já está no segundo mandato, acho que está bem, a filha pode vê-la nas páginas de jornal vez ou outra, mas as denúncias nunca são provadas e tudo bem. Ela não vem nunca, já pedi a separação, então eu posso me considerar pai solteiro, certo?

- Ah, minha nossa, a sua mulher é aquela de cabelo vermelho… aquela aqui da cidade? A…

- É ela mesma, nem precisa dizer o nome, mas é ex, viu? Ex. Agora dá licença que minha filha está esperando o ovo.

- Quantos anos ela tem? – eu perguntei.

- Sete.

- A minha tem seis. O pai se mandou no mundo e hoje eu vou quebrar a minha dieta só parar comer ovo de Páscoa o dia inteiro com ela, você entende como ela é especial pra mim?

- Só por que você vai quebrar a dieta?

- Você é homem, nunca vai entender.

- Eu entendo certas coisas de mulher, sim. Minha filha é quase uma moça e sou eu quem dou as dicas. Você não deveria se preocupar em quebrar dieta por comer um ovo de Páscoa.

- Só porque você quer esse mesmo ovo, né?

- Não. Porque você não precisa, está bonita desse jeito.

Bonita? Eu, bonita? Desde que o desgraçado do meu ex-marido resolveu se tornar viajante profissional nunca mais ninguém me disse que eu estou bonita. E que não preciso de dieta!

- Olha, obrigada (droga, estou gaguejando), mas e o ovo, com quem fica?

- Eu peguei primeiro, fica comigo.

Desisto. Ele tem razão. Ele foi gentil, legal em conversar comigo, também cria uma filha sozinha e eu não tenho o direito de ser chata ao ponto de tirar o ovo da filha dele. Vou procurar outra marca, explicar para minha princesa que acabou e ela vai entender, ela é muito inteligente, vai entender. Pelo menos vou comer um ovão inteiro com ela sem culpa. Puxa, estou bonita.

- Mas olha… o ovo tem duas partes, se você quiser, podemos dividir – ele disse.

- O quê? Dividir o ovo? Mas como as meninas vão entender se chegarmos com metade de um ovo de chocolate melecando nossa mão e…

- Vai almoçar lá em casa, leve sua filha e na hora de darmos o ovo, entregamos o mesmo para as duas. São meninas, têm quase a mesma idade, vão se dar bem. De quebra, levamos outros ovos para elas não se sentirem prejudicadas. A proposta é boa.

Tão boa que eu, sem o menor pudor de mãe com uma certa idade nos ombros, aceitei. Deixei a menina no carro e toquei a campainha para sentir o clima da casa. Uma senhorinha atendeu, eu reconheci como a costureira da minha tia e a partir dali foi só festa. Eu e Elianinha entramos, as meninas dividiram o ovo da Barbie, ganhei um ovo de chocolate branco do David (ele tem nome), levei um prato de bacalhau e parecia que nos conhecíamos de tempos.

A divisão de ovos virou tradição que não conseguimos mais quebrar. Todos os anos é a mesma coisa, as meninas pedem o mesmo ovo e dividem na nossa frente, cada uma come sua metade e ainda evitamos desperdício, porque eu como o ovo que ganho sozinha, em um só dia. Afinal, dieta a gente pode voltar a fazer depois. E ele ainda me acha bonita.

BOA PÁSCOA!

Alegrias,
Fernanda.

Ficção – O perdão de Carina

segunda-feira, dezembro 8th, 2008

Eu só percebi a perfeita imbecil que eu era anos depois. Sério, foram anos para perceber. Primeiro eu realmente achava que tudo aquilo era normal, que eu só estava passando por um momento difícil, que ele era um cara especial e merecia uma segunda chance e que nunca mais em toda a minha vida, e se eu tivesse mais do que uma vida valeria também, eu encontraria alguém que me amaria como ele me amava. Eu vivia uma relação de palpitação no coração, daquelas ruins, da angústia e desconfiança, mas pensava que era boa.

Primeiro que ele não me amava. E só isso já seria suficiente para mandá-lo embora. E todo o resto, desde o começo, estava errado. Aquilo tudo não era normal merda nenhuma, por que desde quando “tudo bem” se um cara te trai e ainda bota a culpa em você? Ele não estava passando por momento difícil, era um vagabundo mesmo que só pensava em jogar futebol e comprar filmes pornôs na TV a cabo e não era nada especial, embora me fizesse acreditar nisso. Mesmo se eu ficasse sozinha para sempre, esse fim parecia melhor do que viver aquilo.

Lúcio não só me traiu como fez isso com uma cretina que morava no nosso prédio. Uma vizinha que iria ficar careca em poucos anos, mas ele não deve ter percebido. Aquelas entradas na testa me davam arrepios, mas foi com ela, com aquela mulher estranha, que ele saiu por três meses. Saiu, não, entrou, porque ainda confessou que passou uma semana com a estranhona lá em casa, quando eu viajei a trabalho. Que nojo.

- Eu não estou arrependido.
- Ãh?
- Eu estou apaixonado por ela, Carina.
- Peraí que eu não entendi, você tinha acabado de dizer que queria salvar nosso casamento antes de dizer que não está arrependido.
- Mas eu quero.
- Não dá pra unir “salvar o casamento” com “estou apaixonado por outra”.

E mesmo assim, mesmo assim eu ainda o deixei morando lá em casa. Eu falei um monte de abobrinhas, critiquei, mas acreditei na palhaçada de salvar o casamento depois que ele trouxe flores e disse “só fiz isso porque em casa não encontro o que preciso”. Como a careca do andar de cima era cozinheira profissional, não é que lá fui eu fazer um curso de culinária para agradar o marido? E lá recebo a ligação dele dizendo que sairia para jantar com os amigos. Em plena cinco horas da tarde de um sábado.

- Está cedo para um jantar. Eu mesma farei o jantar mais tarde.
- Nós precisamos ter nosso espaço, querida.

Entre mãos melecadas de massa caseira para espagete e um delicioso pesto aprendido no curso, que eu resolvi fazer no dia seguinte, eu percebi que aquela não era a vida que eu queria para mim. Não queria agradar alguém quando eu deveria receber os agrados depois da maior filhadaputice que um homem pode fazer com uma mulher, não sonhava em passar os meus dias vivendo uma relação em que só eu acreditava que poderia dar certo, quando a outra parte ainda pensava na outra e, principalmente, eu não merecia aquilo.

Foi quando ele entrou na cozinha perguntando o que tinha para jantar. Eu tirei o avental e limpei as mãos em um pano de prato.

- Macarrão. Mas só para mim. Vá embora agora. Você tem até o jantar para sumir da minha frente.

E foi desse jeito, sem programar, sem pensar em como seria um futuro horrível sem aquele crápula que eu imaginava amar, sem ponderar sobre nada, que eu coloquei o Lúcio para fora de casa, já que eu morava lá antes de nos casarmos, era eu quem pagava o aluguel e, bom, eu tinha sido a traída da história e não sairia dali de jeito nenhum. Para azar do safado, a careca foi viajar e nunca mais voltou e eu…. eu aprendi a me amar antes de amar outro homem. A me respeitar acima de tudo e só depois me permitir entrar em uma relação.

Anos depois eu percebi que fui muito mais estúpida do que pensei. Porque eu insisti eu sustentar uma mentira. Não sei qual foi o motivo – agradar os meus pais, o medo de ficar sozinha ou tudo junto -, mas o fato é que eu cresci só depois daquilo. E quando a gente se respeita, o amor vem. Mas um amor de verdade mesmo. Que só faz o coração palplitar se for de felicidade.

Ficção – Os “nãos” de Bel

domingo, novembro 2nd, 2008

Algumas pessoas dizem que sou complicada, mas não é verdade. Sou uma mulher normal e, bem, se toda mulher normal é complicada, então o problema não é necessariamente comigo. Eu sempre soube o que queria, um homem para estar ao meu lado sem que eu precisasse ser quem não sou.

Parece pouco, mas é muito. Porque os machos que eu conheci eram mais ou menos assim: lindos e educados, adoravam estar comigo e me exibir como troféu e quando me viam de avental na cozinha, creme no rosto ou percebiam que meu doce preferido era o quindim da padaria muquifo ao lado da casa dos meus pais, logo soltavam um “essa não é a Bel que eu conheci”. O problema é que eles gostavam da Bel profissional e eu queria ser apenas eu, mesmo quando estava longe dos terninhos e notebooks.

Eu nunca pedi pra homem nenhum parar de beber cerveja (e acho o gosto nojento) nem disse que não poderia assistir ao futebol (que é muito sem graça na minha opinião). Mas por que então, raios, eu tinha que ser perfeita?

Então desisti. Chega de homem. Sou feliz solteira.

Até que ele apareceu. Quando me contou que não bebia cerveja porque preferia vinho e não torcia por nenhum time, apenas em Copa do Mundo, eu quase coloquei uma aliança no dedo dele naquele momento. O problema era que o moço trabalhava comigo. E eu relutava em aceitar qualquer homem. Desisti de homem, lembra? Estava firme nesse propósito.

- Desculpe, desculpe… eu não sabia que você estava na sala de reuniões, Bel.
- Sem problemas, já desliguei o telefone.
- Você é uma mulher cobiçada.
- Imagine, que nada.
- Marcou de sair para jantar com alguém?
- Não, na verdade. E você?
- Estou sem nenhum programa por enquanto.

Quando ouvi aquilo, já sabia que ia fazer besteira.

- Quer sair pra jantar, Igor?
- Não.

Ele só queria saber se eu estava livre, mas não quis sair comigo? Nem passei perto da mesa dele no dia seguinte, depois que minha meta de ficar longe de homens tinha sido abalada com um convite ridículo que eu mesma fiz.

Mas, no elevador, lá estava ele.

- Está indo embora, Bel?
- Sim.
- Vai pra casa?
- Sim.
- Tem comida na sua casa?
- Não.
- Quer jantar comigo?
- Não.

A porta abriu, eu saí como vitoriosa, mas bati minha cabeça no travesseiro mil vezes naquela noite de tanta raiva. De mim e dele, babaca. Depois de 24 horas de tortura por ter sido rejeitada, o homem me convida para sair? Não tive dúvida e recusei.

Nossa história ficou desse jeito por meses. Eu não conseguia olhar para outro homem, ele estava sempre no meu campo de visão, as brincadeiras não acabavam, mas foi justamente com uma conversa despretensiosa que conseguimos nos entender.

- O que é esse pacote na sua mão?
- Você é curioso.
- Desculpe, é que é grande…
- A Lurdinha me deu. São panelas novinhas. Mudei da casa dos meus pais e agora tenho panelas.
- Justo quando acabei de instalar o gás em casa. Mas não tenho panelas.
- Não se preocupe, eu só tenho dois pratos, os outros dois quebraram. Dá pra viver com pouco.
- Eu ainda tenho uma caixa com quatro pratos inteiros. Podemos juntar nossos pratos e suas panelas com o meu fogão, Bel.

Primeiro, nós rimos. Mas naquela noite eu saí do escritório com as panelas em direção à casa dele, onde fizemos o jantar. Coloquei avental, prendi os cabelos em um coque e enquanto ele lavava a louça, eu preparava o macarrão.

- Você fica linda até de avental. Acho que deve ficar bonita de qualquer jeito.

Eu me mudei para aquele apartamento três meses depois. Com as panelas e os dois pratos. E nunca mais tive de ser quem não sou.

Ficção – Escolhas de Deise

segunda-feira, outubro 27th, 2008

Quando era criança, não pensei em ser outra coisa que não mulher casada. Conheci o Henrique quando tinha 17 anos e me apaixonei perdidamente – mas perdida fiquei quando resolvi casar. Na verdade, nunca saberei se foi amor, porque antes dele só havia paquerado o vizinho, que tinha 10 anos a mais e me achava uma menina (o que, de fato, eu era). O Rique tinha quase a minha idade, trabalhava com o pai em uma construtora e tinha muito dinheiro. Na verdade, o pai tinha muito dinheiro. Para meus pais, era o Rique um afortunado endinheirado.

Estudei até o terceiro ano do colegial e Rique, que não pensava em fazer faculdade, não me incentivou a cursar uma também, afinal, não iríamos precisar. Com aqueles olhos verdes, ele me conquistava a obedecer. Eu apenas dizia sim e pronto, se ele estava feliz, eu também estava. Assim, nós casamos quando eu completei 18 anos e fomos morar em uma das casas de seus pais. Uma das muitas que eles tinham.

No começo, eu era feliz. Eu acho que era feliz, porque se aquilo não era felicidade, eu não sei o que pode ser e me sinto constrangida em pensar que posso nunca ter sido feliz de verdade antes de agora. Mas até chegar agora muito passou.

Rique chegava tarde em casa e eu tinha empregados para fazer tudo por mim, mas como não trabalhava, eu mesma me aventurava na cozinha para preparar o jantar que, aliás, ele quase nunca comia.

Logo veio o Riquinho. Eu não queria esse nome, mas como tudo na vida, não parei para discutir. Ele quis colocar seu nome no filho, estava tudo certo, então. A Regina veio logo em seguida. Os dois não tinham nem um ano de diferença e por muito tempo eu esqueci de mim. Era como se eu não existisse. Rique voltava cada vez mais tarde e as poucas vezes em que eu saía era para eventos de sua empresa. Quando ele dizia que eu podia ir. E eu nunca questionei.

Meus filhos cresceram, foram para a escola e eu tinha orgulho daquelas duas criaturas. Minha vida era dedicada a eles e ao meu marido e era uma boa vida, uma vida confortável. Até que, um dia, num daqueles dias em que o Rique chegava tarde, eu disse que prepararia um lanche enquanto ele tomava banho. Encontrei uma mancha de batom no colarinho da camisa, aquela coisa clichê-ridícula-que-parece-mentira. Mas era verdade. O meu marido “perfeito”, aquele que todos diziam que era um presente dos céus, era um traidor mentiroso.

Quando mostrei a camisa, do lado de fora do Box do banheiro, ele desligou o chuveiro, enrolou uma toalha no corpo e disse apenas Não comece com sermão. Que ótimo, eu tinha acabado de descobrir uma traição e meu companheiro me mandava não começar com um sermão? Completou que não queria lanche nenhum e ia dormir. Foi para a cama como se nada tivesse acontecido. E passei aquela noite no banheiro chorando. E imaginando onde eu estava? Aquela Deise de 17 anos tinha morrido e todos os meus sonhos tinham ido junto para a cova.

No dia seguinte, quando saí do banheiro, ele já tinha ido embora para o trabalho e levado as crianças para a escola. Na hora do almoço eu as busquei, passamos em casa para arrumar as malas e disse apenas para que confiassem em mim. Sem despedidas, sem explicações, sem gritos ou desespero, escrevi uma carta com a palavra Adeus e deixei sobre a cama. Fomos embora para a casa dos meus pais. Eu não tinha casa. Nem a casa era minha. Por anos eu vivi os sonhos do traidor, as vontades dele no ambiente dele.

Em poucos dias eu aluguei uma casa e instalei as crianças no mesmo bairro para que pudessem ficar perto dos avós. E percebi que não queria pensão porque não desejava nada que vinha daquele homem. Nada. Se eu não tive amor por quase 10 anos, não seria agora que iria pedir dinheiro.

Na primeira visita ao mercado eu percebi que nem sequer sabia mais do que eu gostava. Não sabia qual comida comprar e nem mesmo qual pasta de dentes escolher. A prateleira me mostrava um mundo de possibilidades que eu nunca tive. Pela primeira vez, eu poderia escolher. Nem que a escolha fosse pelo mais barato. Era a minha escolha e eu dei muito valor.

A única coisa que eu sabia fazer era comida. Por causa dos meus treinos naquela cozinha com duas cubas, um metro de pia de granito para abrir as massas, um fogão de seis bocas e todos os utensílios mais bonitos que se via em revista, eu aprendi a me virar com um fogão vagabundo que comprei usado, uma pia minúscula e itens de plástico do mercadinho. E comecei a entregar marmitas.

Em pouco tempo, tive que contratar uma moça para me ajudar. Colocamos na porta da casa alugada uma placa que dizia Cozinha da Deise e instalamos mesinhas no quintal. A clientela cresceu e eu abri um restaurante. Eu podia viver sozinha. Meus filhos cresceram e aos 17 anos Regina conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Foi naquele dia que eu tomei uma decisão. Iria conversar com ela como nunca tinha feito em toda a nossa vida.

Eu não vou proibir nada, minha filha. Muito pelo contrário, porque namorar é saudável. Mas não cometa uma loucura. Vá estudar, vá se divertir, sair com suas amigas, aprender um ofício e então você poderá pensar se quer se juntar a alguém. Eu vou te contar a minha história, filha… e a decisão, depois, será sua.

Regina casou-se aos 30 anos com o mesmo rapaz, depois de anos de namoro e os dois terem concluído a faculdade. Hoje eu sou uma mulher ocupada. Além da minha rede de restaurantes, que estão espalhados por todo o país, ajudo a cuidar dos meus dois netos, um de cada filho. Tenho um namorado, mas não quero mais casar. Em compensação, quando vou ao mercado hoje em dia, eu sei exatamente o que comprar. O que eu gosto, o que eu quero. Hoje, aos 55 anos, eu sei quem eu sou, pela primeira vez na vida.

Ficção – Quase vida de Marli

terça-feira, agosto 5th, 2008

No dia seguinte ao seu aniversário de 42 anos, Marli decidiu acabar com a sua vida. O dia anterior tinha sido um dos mais solitários de que se lembrava, embora as memórias não fossem tantas. Sem pais, filhos, irmãos os tios, Marli passou horas deitada no sofá ouvindo o mesmo CD repetidas vezes, com o telefone sem fio na mão, mas o aparelho não tocou nem uma única vez. No ano anterior recebeu parabéns dos colegas de trabalho. Os abraços frios e sem sentimento não valeriam de nada para uma pessoa com amigos; para Marli, tinham um significado de existência.

O melhor era acabar com tudo naquele domingo. Marli não imaginava mais alguns anos de completa ausência. Ela não era infeliz, apenas não era nada. Tinha um bom emprego, um cargo importante em uma empresa respeitável, um salário que seria maior do que todas as suas amigas caso tivesse amigas, um apartamento confortável em uma cobertura de bairro calmo e residencial e uma saúde de ferro. Se esperasse um fim normal, seriam anos de completo nada. Marli precisaria agir.

O aniversário foi a última esperança e Marli já dormiu com a certeza dos acontecimentos do dia seguinte. A primeira decisão foi escolher a roupa: um vestido preto. No fundo do armário, encontrou um álbum de fotografias. Tinha mania de escolher as melhores fotos de cada ano e colocar em um único álbum. Casou-se e separou-se três vezes e em nenhuma delas teve coragem de jogar o álbum fora. Ali ela tinha uma quase vida.

O último casamento de Marli poderia ser resumido em um erro. Em nenhuma das fotos ela aparecia sorrindo. Foi então que ela percebeu que os mais bonitos lugares visitados não interferiam no semblante sem alegria. Marli aparecia, no máximo, com um sorriso de lábios cerrados. Justo ela, que gostava dos seus dentes. Marli sempre ouviu, quando criança, sobre o seu sorriso perfeito. Talvez o ciúme doentio do último marido ou a falta de vontade de ser vista pelo mundo a tenham feito esquecer que havia algo em si mesma que ela apreciava.

As fotos das primeiras páginas do álbum remeteram Marli à história com o primeiro marido, com quem se casou muito jovem e de quem se divorciou quando acreditou estar apaixonada pelo segundo marido. Marli pensava que o amor era feito de aventuras diárias, loucuras cometidas pela paixão e surpresas todos os dias. Com o primeiro marido ela tinha uma rotina agradável e feliz. Com o segundo, um sentimento arrebatador que era tão forte como as mãos pesadas daquele que dormia em sua cama. Conheceu o terceiro marido em um consultório, quando tentou se tratar de algo que pensava que tinha, mas poderia muito bem ser apenas desilusão.

Lembrou que as únicas risadas verdadeiras tinham sido dadas com aquele que ela dispensou. O primeiro não lhe proporcionava loucuras, mas trazia flores quase todos os dias. Colhia no quintal e entregava com um beijo. Escrevia poesias em guardanapos e deixava bilhetes no espelho. Marli percebeu somente anos depois que fora amada. Ironicamente, quando tudo estava quase no fim.

Com o vestido preto sobre a cama, buscou a caixa de remédios e segurou-a por um longo tempo. No colo, o álbum recebeu uma única lágrima. No momento em que o telefone tocou.

Não reconheceu a voz, mas ele pediu desculpas por não ter ligado no dia anterior. O atraso era pequeno, mas os votos de felicidade ainda valiam. Mas tanto tempo sem nos falar, por onde andava? Casei, separei, tive uma filha e estou sozinho. E você? Casei, separei e foram três vezes, mas não tive filhos. Trabalho naquele mesmo lugar, mas a função é outra. Coincidência, eu também. Não me esqueci do seu aniversário nem um dia em todos esses anos, vamos nos ver? E Marli disse sim. Sem saber o motivo, apenas disse sim e combinou o dia como sendo aquele, o horário para dali a poucos minutos.

O vestuário não era mais apropriado. Jogou no chão o vestido preto, no lixo a caixa de remédios e guardou no mesmo lugar do armário o álbum de lembranças. Ali, nas primeiras páginas, estavam as fotos do homem que iria encontrar em pouco tempo e a quem agradecia ter mudado seus planos. Quando Marli pensou que a estrada acabaria, tudo voltou ao início. E esboçou um sorriso aberto e encantador.

Ficção – Identidade

quarta-feira, junho 4th, 2008

ELA – Acho que estou com crise de identidade.

ELE – Crise de quê?

ELA – Identidade.

ELE – Ah, tá.

(silêncio)

ELA – Você ouviu?

ELE – Ouviu o quê?

ELA – Como ouviu o quê?

ELE – Ah, da crise. Ouvi.

ELA – E não vai dizer nada?

ELE – E tem alguma coisa para dizer?

(silêncio)

ELA – O meu problema é você.

ELE – Ei, não me meta nessa história.

ELA – É você, sim.

ELE – Não tenho nada a ver com a sua identidade. Ou falta de identidade. Ou sei lá o que você quer dizer com isso.

(Amália inquieta)

ELA – Me diga: qual é a minha cor preferida?

ELE – O que a sua cor preferida tem a ver com o seu problema de cabeça?

ELA – Não é de cabeça. É de identidade.

ELE – Dá no mesmo. Mas é azul, por quê?

ELA – A SUA cor favorita é azul.

ELE – A sua também.

ELA – Não, é a sua. Esse é o problema.

ELE – Tem algum problema em gostar de azul?

ELA – Adalberto!

ELE – Ou problema em você gostar da cor que eu gosto?

(indignada)

ELA – Adalberto!

ELE – Não entendi.

(silêncio)

ELA – Somos casados há vinte e dois anos e você não sabe a minha cor preferida?

ELE – Você me disse que era azul. Deve ter dito, sei lá, quando namorávamos.

ELA – Você é quem gosta de azul.

ELE – Você também.

(longa pausa)

ELA – O problema é meu.

ELE – Eu não sei qual é o problema, mas há um minuto ele era meu.

ELA – Vamos, agora responda: qual é a comida que eu mais gosto?

ELE – Não é possível. Você endoidou, Amália.

ELA – Dá para responder?

ELE – Picadinho.

ELA – Claro, picadinho.

ELE – Viu?

(irritada)

ELA – Picadinho é a SUA comida preferida. Não agüento mais comer picadinho. Para ser sincera, eu nunca suportei comer picadinho. Eu detesto picadinho. Eu sempre detestei picadinho! Pior do que o meu picadinho, só o picadinho da sua mãe.

ELE – Você me disse…

ELA – …esqueça o que eu disse! Abra bem os ouvidos a partir de agora: De-tes-to picadinho. Entendeu?

ELE – Entendi. Mas…

ELA – É, o problema é mesmo meu. E é meu desde que eu permiti que você ditasse as regras. Que você impusesse o que você gosta como regra geral. Que você determinasse o que eu mesma gosto. Adalberto, eu não sei mais do que eu gosto. Eu sei que a minha cor preferida não é o azul e que jamais colocaria picadinho em meu cardápio se não fosse para agradar você. Só isso.

ELE – Eu sempre achei que você gostava de picadinho. E da cor azul. Lembra que eu te dei uma saia azul que você adorava?

ELA – Não, eu não adorava. Para ser sincera, sequer gosto de saias. Eu prefiro as calças, porque me deixam mais à vontade e me sinto mais bonita. E aquela saia azul era brega.

ELE – Você usou a saia diversas vezes, Amália.

ELA – Sem gostar. Essa é a verdade. Desculpe.

ELE – (olhando para o teto) Eu nunca entendi muito as mulheres, mas agora entendo menos ainda.

ELA – Como você não me entende? Você nunca percebeu que eu não comia picadinho com a mesma vontade que eu comia carne mal passada?

ELE – Carne mal passada? Nunca fizemos carne mal passada em casa.

ELA – Engano seu. Eu fiz algumas vezes, quando as visitas vinham. Mas a sua era bem passada, como sempre.

ELE – Pensei que você também preferia a carne bem passada.

ELA – Pois não. Não mesmo.

ELE – Então por que comia?

(Amália abaixa a cabeça e muda o tom de voz)

ELA – Não sei. Esse é o problema.

ELE – Primeiro o problema era meu, depois era seu e agora você não sabe a quem ele pertence?

ELA – Mais ou menos isso.

ELE – E para que você precisa saber disso agora? Não está tudo bem?

ELA – Como pode estar tudo bem depois que eu descobri que perdi minha identidade?

ELE – De novo o papo da identidade…

ELA – Você sabe me responder qual é o presente que você me deu e que eu mais gostei até hoje?

(pensativo)

ELE – Hummm… aquele par de brincos de diamante.

ELA – Sem dúvida foi um belo presente. Bonito, de bom gosto e que todas as pessoas elogiaram. Mas o que eu nunca me esqueço foi quando eu quebrei os dois pés, você se lembra disso? (risada). Eu me lembro com carinho daquela época. Porque eu estava com os pés quebrados e em todos os dias você nunca se esqueceu de me trazer um bombom e uma rosa. Naqueles dias você fez o jantar para mim e jantamos juntos na cama. Foram os seus melhores presentes.

(Adalberto fica atônito)

ELA – Você não sabe nem que eu sou, depois de tantos anos juntos. Simplesmente porque eu mesma não sei quem eu sou.

ELE – Você é a mulher que eu amo.

ELA – De qual jeito você me ama? Assim, com os seus gostos, ou com os meus próprios? Você não sabe quem eu sou para me amar. Eu me transformei em alguém que não recorda os próprios gostos.

(Amália sai e volta com uma mala)

ELA – Preciso ficar sozinha.

ELE – Amália, o que significa essa mala? Por que você precisa ficar sozinha? Você vai voltar?

(Amália abre a porta)

ELE – Mas… Mas… Para onde você vai?

(Amália olha e sorri)

ELA – Procurar minha identidade.

(Amália bate a porta e sai).

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Alegrias,
Fernanda.