Archive for junho 5th, 2009

“Axensorista”

sexta-feira, junho 5th, 2009

Escrevi este conto aos 17 anos, foi meu primeiro conto ou, como dizia um professor da faculdade, uma crônica reflexiva. Foi ele que, após ler, me chamou para o primeiro trabalho freela na mídia impressa. Grande mestre. E então esse conto ou crônica, que já completa 13 anos, tornou-se o símbolo do meu início na literatura, de certa forma. Meu primeiro escrito de gente grande, sabe? Compartilho com vocês e espero que gostem.

Alegrias,
Fernanda.
PS: Nada foi mudado daquela época, apenas o valor em reais para acompanhar o parco aumento do salário mínimo nesses anos.

“Axensorista”

“Ou eu não me chamo Maria”… continuava a senhora a repetir. Eram frases curtas seguidas do mesmo fim, e eu já estava mesmo duvidando de que ela se chamasse Maria. Porque parece impossível que tal criatura consiga realmente realizar os feitos aos quais se referia, por mais insignificantes que parecessem a um ser humano normal, assim como eu, assim como nós todos. Mas ela sonhava, e sonhava alto para sua vida medíocre, baixo para uma outra vida qualquer.

Conheci Maria no ônibus. Aqueles ônibus lotados que se pega para ir para casa e que servem como motivo de um bom cochilo. Sentei no mesmo lugar de sempre e esta senhora sentou-se ao meu lado. “Isso porque essa lata velha está vazia hoje. Fui premiada com uma companhia”. Era mesmo muita emoção, que até fechei os olhos fingindo dormir. Mas Maria, até então por mim desconhecida, começou a falar.

“Pra sinhora vê, nove hora da manhã e eu tô indo lá no lugar da mocinha que num podia ir. E eu que tenho que ir! Eu ainda saio desse emprego ou não me chamo Maria”… Eu não tinha reações, acho que temia que ela me procurasse como confidente cada vez que me encontrasse no ônibus. Mas o fato foi que não importava o que estivesse fazendo, Maria queria falar. E o fazia. Descobri então que era funcionária de limpeza (“a chefe delas, sabe, dona?”) e que a mandavam para diferentes lugares quando alguma outra funcionária faltava, apesar de este não ser o seu serviço. Ela me detalhou como eram suas manhãs e me confessou que às vezes tomava um golinho do café dos “poderosos” – mas quem iria notar? A pobreza era tanta que se sentia uma privilegiada, era a dona dos sacos de lixo que vez ou outra eram roubados por pessoas que ela nem imaginava. “Roubar saco de lixo, dona, vê que coisa!” Não via, mas imaginava.

O seu grande plano na vida era deixar de ser uma boa faxineira e, assim, ser despedida. Afinal, Maria não era boba, ela mesma dizia, e queria ganhar o que lhe era de direito. Depois? O futuro poderia ser brilhante e ela seguir seu grande sonho: Ser a’x'ensorista! Não que ela não fosse grata pelo serviço que tinha, longe disso, mas se ao menos ela ganhasse R$ 800… “Poderia estar rica e ter de tudo, mas salário mínimo, dona, é salário de fome”. Assim, me indagava pela primeira vez durante a conversa, ela queria a opinião de alguém, será que deveria mesmo ser despedida e seguir seu sonho? “Sabe, dona, eu sempre quis ser axensorista, tem uma amiga minha que é, eu quero ser também. Mas pobre não tem que querer nada, tem que comer. Daí eu tenho medo, porque eu vejo que tenho um sonho e não sei se posso seguir”.

“Não sei se posso segui-lo”… Eu nunca pensei em não poder seguir meus sonhos. Eu sempre os tive e nunca imaginei que alguém tivesse medo de seguir, o que na minha vida, é uma das coisas mais preciosas. Talvez porque eu tenha comida na mesa, cama quente, roupa lavada. Eu tenho luxo. Não o luxo das coisas, mas o luxo da esperança. O luxo que muitas pessoas não têm, o luxo de ter um sonho, por menor que seja, e ter esperança com ele. Foi aí então que percebi que sonhar é um presente, e esperar a realização é luxo. Há muito mais o que ser feito além de sonhar. Comer, ter lugar para morar… Direito? Mas quem se importa com isso! Maria se importa e, assim, continuava seu plano. Na verdade, um plano em busca do luxo, do grande luxo de realizar seu sonho.

Era minha vez de descer, mas quem diria, eu me entretia cada vez mais com seu discurso. Cheguei a aconselhá-la, disse somente que deveria fazer aquilo que achava o correto, seguir seu sonho, ser mesmo ascensorista. “Boa sorte, de coração”, dizia eu. “De coração, olha em que ponto cheguei”, pensava sorrindo. Ela se chamava Maria mesmo, e eu sei que vai conseguir.