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O Ano Novo de Lucinha

quarta-feira, dezembro 30th, 2009

Eu tenho uma novidaaaaaaaaade!!! Mas só vou contar no ano que vem, ha-ha-ha. Tá, não resisti à piada. Mas é verdade. Estou louca para contar, mas acalmem os ânimos que o novo ano está logo aí, pra dar sorte. Por enquanto, fiquem com o conto de Ano Novo (é do ano passado, mas é novo). Para reler ou para ler, especialmente àquelas novas leitoras do blog e já tão bem-vindas. Espero que curtam, porque é um dos contos de que mais gosto. E até daqui a pouco que ainda tem mais esse ano.

Alegrias,

Fernanda.

O Ano Novo de Lucinha

Atchim. Eu esqueci. Sou uma imbecil, como é que pude me esquecer? E agora, e se eu ficar doente? Eu posso sentir, o nariz começou a fungar, os olhos estão ardendo e eu sei que a culpa é minha, só minha, porque esqueci daquele remédio de cor laranja. Eu tomei o verde, que fica no meu criado-mudo, o azul e o cor-de-rosa que estão na cozinha, mas esse laranja eu deixo na sala para tomar na hora em que eu ligo a TV para tomar o café, mas hoje eu não quis café, não liguei a TV e não tomei justo o comprimido para a alergia. Ela não me deixa em paz, essa alergia me deixa com nariz de palhaço, mas aqueles palhaços vagabundos de festa de criança em escola, sabe? Aquele que tem nariz de plástico comprado no camelô mesmo. E eu fico assim, todo mundo me olha na rua. Eu sei que é para mim.

O mais importante é que eu nunca me esqueço do cor-de-rosa. Isso porque, bem, é menos complicado ficar com alergia do que ter um ataque do coração porque a pressão subiu. Eu não tenho mania de remédio e nem acho que tenho todas as doenças do mundo, eu simplesmente tenho todas essas doenças mesmo. Não, tá, é verdade, nem todas, mas e se eu puder evitar algumas é bem melhor, não é? Atchim. Ai, meu nariz. É o cachorro da vizinha, ele me dá alergias, é um horror aquele monte de pêlo em todo lugar da casa, ai que nojo, pode dar coceira e doença de pele. Mas eu não tenho doença de pele. Só alergia mesmo. Talvez.

Saio de casa e passo na farmácia, só para comprar uns itens de higiene pessoal… Ai, que maravilha, os antigripais estão em promoção. Não que eu precise, mas e se o espirro não for alergia e eu estiver com princípio de gripe? Pode ser, não fará mal. Opa, é a Mariazinha do segundo andar, ela está aqui também, uau, ela comprou uma camisinha sabor morango. Eu nunca usei uma camisinha sabor morango. Na verdade, eu não transo há alguns meses, nem preciso disso. Não muitos meses, só alguns… tipo, uns cinco ou seis. O meu último caso nem tomava vitamina C. Eu não posso ficar com um cara que nem toma vitamina, ele é um potencial cliente de hospital. Sem chance. Mas me deu vontade de achar alguém para experimentar a camisinha de morango.

Aí me escondo atrás da prateleira de xampus, encontro ao lado uma gôndola com remédios para dor e me lembro que tenho sentido uma dor chata nos pés quando ando muito. Não é normal. A Cida me disse que se andamos muito, sentimos dor, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não é, não comigo. Atchim. Ah, sim, e tem ainda a pílula laranja, eu vou levar mais uma caixa e deixar um pouco no criado-mundo e outro pouco na cozinha, para o caso de eu resolver não ver TV em alguns dias na hora do café.

A cidade está em festa, mas grande coisa é o Ano Novo. Mais um dia, vira o calendário e puf, é o novo ano que chegou, não faz a menor diferença. Eu não vou renascer num dia. E caminho de volta pra casa pensando que milagres não existem e que, sinceramente, usar branco é a maior babaquice. Branco, que cor sem graça. E festa pra quê? Eu vou passar em casa, vou assistir ao especial de fim de ano e aproveitar os dias de recesso no trabalho.

- Au.

- Ãh?

Um cachorro no meu pé. No meio do caminho para casa, lá estava, no meu pé, um cachorro vira-lata com olhar carente. Atchim.

- Sai. Sai.

- Au au.

- Sai, cachorro.

- Au.

- Não, isso aqui não é comida, é remédio. Coisa séria, cachorro, coisa séria.

Eu não sei, mas ele me pareceu bastante interessado nos remédios. Abro a sacola, mostro que não há comida, continuo andando, mas o fedido vem atrás de mim. Cachorro estranho, nem me conhece. Atchim. Viu, é ele. É esse cão sujo que atacou a minha rinite alérgica. Sai, passa, anda, vai embora. Ah, não quer ir? Tá bem, vai andar até se cansar, porque eu não vou mais falar com você, está certo? Não falo mais. E já são seis passos na calçada. Toc toc toc toc toc toc. Como é que um animal pode ser tão persistente?

Ele está me irritando. E o jeito como ele olha para mim é… é tão… tão… carente. Será que ele tem uma casa? Não parece, está sujo e acho que tem pulgas, exala um fedor, não tem coleira e se coça o tempo todo. Credo, deve ter um monte de outras doenças. Ou não. Ele pode só estar sujo… e com fome. Puxa vida, eu não sou assim tão má…

Quer um comprimidinho, cachorro? Sério, se você quiser, te dou um dos complexos vitamínicos, acho que pode te fazer bem. Você parece meio fraquinho, acho que vai precisar de comprimidos por uns dias.

Slurp.

Ai, meu santo protetor dos animais fedidos de rua, me ajude! Esse porco me lambeu, e se eu pegar uma doença? E se ele me transmitir alguma coisa muito séria com essa lambida molhada? Não, pensando bem, não. Tá com fome, é? Melhor não te dar isso aqui, acho que vai precisar de outra coisa, mas… longe de mim, tá? Eu compro, você come e se manda, combinado?

- Au

- Então tá.

Nossa, quanta coisa legal existe numa pet shop. Mais divertido do que uma farmácia. Eu posso levar a ração e ainda uns potinhos para colocar água, depois um sabonete próprio para cães, um lacinho de cabelo. Azul ou rosa? Vou levar amarelo. E então uma loção, uma caminha bonita com babados, um osso para roer, um brinquedinho, uma bolinha e tem esse aqui, ai que lindo, posso levar dois desse…

Atchim. Não cumpri minha promessa. Ele entrou em casa, eu dei um banho, coloquei comida e em poucos minutos ele dormia no meu colo. No meu colo! Puxa, que bonitinho. Ele respira de maneira tão calma e o focinho está úmido… hahaha, você me fez cócegas com esse focinho! Que fofo. Talvez ele possa ficar hoje e amanhã eu o levo para a casa de alguém ou talvez ele possa ficar, se não atrapalhar. Eu acho que ele pode ficar. É, acho que pode.

Foi o primeiro Ano Novo que passamos sozinhos. No ano seguinte, ele já tinha uma irmã canina e eu já tinha um namorado, que conheci quando levava o Lobo para passear – o meu namorado levava a Flor e os filhotes se conheceram, blábláblá, eu acho que meu namorado armou aquilo tudo, eu acho, mas foi lindo e fingi que não percebi. Passei a usar branco que, afinal, nem é uma cor tão sem graça assim e os Réveillons começaram a ser cada vez mais divertidos.

A minha vida mudou e eu passei a esquecer os comprimidos e perceber que não precisava tanto deles assim. Hoje só volto à farmácia para itens básicos de higiene, um ou outro comprimidinho essencial e, bom, por causa da camisinha de morango.

O Natal de Janaína

quarta-feira, dezembro 23rd, 2009

Pessoal,

Sério que já chegou outro Natal? Caramba, esse ano voou. Agradeço a todos os leitores que continuam sempre vindo e as pessoas novas, que chegaram recentemente nesse cantinho e me deixam muito feliz. O conto que deixo abaixo é o do ano passado, mas é um presente para todos que chegaram há pouco tempo e ainda não o leram. Espero que gostem. Nos próximos dias estarei com a família, mas sempre que puder, passarei por aqui. Lembrem-se que o fato de estarem vivos e com saúde já é mais do que motivo suficiente para agradecer ao Papai Noel. Ele não existe? Tem certeza? E se for todo o sentimento bom do mundo? O carinho, a amizade, a caridade? E se o bom velhinho for os votos de felicidade, a alegria, o desejo de fazer um ano próximo melhor? Então ele existe, sim. E não vamos deixá-lo morrer.

Um Feliz Natal a todos!

O Natal de Janaína

Eu preciso comprar um presente para a filha do meu namorado. Aquela menininha mimada que, no último Natal, chamou a boneca que eu comprei de ridícula e enfiou o presente dentro da privada. É claro que eu, doce como um marmelo, acolhi a pequenina nos meus braços e disse que tudo ficaria bem, que depois compraríamos outra boneca, mesmo sabendo que ela não queria. Uma menina de nove aninhos já sabe o que diz e é pra ela que eu preciso escolher um presente de Natal, porque o Beto não quis vir para o shopping comigo. Droga, e agora, o que eu vou dar pra ela?

Uau! Promoção compre-um-leve-dois naquela loja bacanérrima. Se eu levar um vestidinho pra molequinha, eu posso ganhar um presente pra mim. Nossa, mas esse shopping está um inferno. Também, por que eu escolhi vir aqui justo na véspera de Natal? Todo mundo teve a mesma idéia? Preciso comprar o presente da enteada, do Beto, da minha tia que teve neném, do pai e da mãe – lembrando que eu terei que passar na casa do pai às dez, da mãe às dez e meia, da tia às onze, da vó do Beto às onze e meia e torcer para que antes da meia-noite eu esteja longe de lá.

Shopping lotado, meu salto quebra. Sem tempo para pensar no que fazer, eu arranco a pontinha quebrada, guardo na bolsa para colar depois, entro na primeira loja que encontro e compro um par de sandálias de dedo bem lindonas cor-de-laranja. Tudo bem que estou de terninho verde, mas era a única do meu número. O importante agora é comprar os presentes. Mas por que mesmo o Beto não quis vir? Ele nunca quer vir a lugar nenhum comigo. Chato.

Comprei os presentes e ainda tenho tempo para fazer uma escova, as mãos, os pés e voltar lindona pra casa, a tempo de colocar um vestido para começar a maratona do Natal. Coisa boa essa vida, eu pareço uma maloqueira que enfiou o pé numa mexerica e meu cabelo oleoso já grudou na testa. Mas é hora de ir embora, ir embora, ir embora, até que… opa, é o Beto. É o Beto, eu sei que é o Beto, o que ele faz aqui? Ai, será que veio comprar meu presente? Que legal, que legal, o que será que eu vou ganhar? Mas, opa, quem é aquela mulher com ele? E eles… tão beijando na boca?

Legal. Gastei todo o meu décimo terceiro salário com presentes para um namorado que passeia com a amante no shopping bem na véspera de Natal. Deve ser uma vagabunda. Mentira, ela parecia uma princesa. Droga, uma mulher bonita ainda por cima, toda chique, vestida de marca dos pés à cabeça. E eu quebrei o salto, estou com roupa de trabalho, cabelo sujo, lotada de sacolas. Merda de vida. Justo hoje que eu estava tão aberta com espírito natalino para aceitar a filha dele. Justo hoje ele me apronta uma dessas. Vai ter que devolver cada centavo que eu gastei.

Vaguei pelo shopping. E agora, o que eu faço? Eu posso deixar os presentes na casa dele, com um recado ameaçador, do tipo “eu sei o que você fez com sua namorada, pague uma grana que eu calo a boca”, assim resgato o que gastei, ou posso chegar no meio da festinha de Natal e surtar, dizer um monte de coisas que sempre quis dizer à família dele, ou ainda…

- Ho ho ho

Era só o que me faltava. O Papai Noel.

- Ho ho ho, minha filha!
- Pô, Papai Noel, hoje não é um bom dia.
- Mas é Natal. Coloque um sorriso no rosto!
- Dá pro senhor ir pro outro lado? Pra lá? Mais pra lá? Vai, assim, tchau…
- Uma moça tão bonita assim mal humorada?
- Olha, eu tô bem humorada, se considerarmos o que aconteceu.
- Desabafa com o Papai Noel.
- Fumou maconha, Papai Noel?
- Abra seu coração.
- Já abri a carteira, que foi mais difícil. E um espaço na cabeça para os galhos. Posso até ser uma de suas renas, bom velhinho.
- Opa, menina, calma, calma… Quer um presentinho?
- Vai ser o primeiro que vou ganhar.
- Se conseguir adivinhar o que eu tenho na minha mão, leva um beijo nesse bocão.
- Papai Noel!!!
- Ahááá. Te peguei.

Não acredito que eu desabafei com ele. Quando o Murilo tirou a barba, eu já percebi que era ele. Ainda com gorrinho e cabelo branco, saco vermelho nas costas, barriga de mentira, óculos de metal, eu sabia que era ele. E o danado me enganou. Meu ex-namorado.

- Seu crápula.
- Que recepção nada calorosa, Jana.
- Você não é o Papai Noel!
- Claro que não. Ele não existe, não te contaram?
- Mas é que… eu te disse…
- Da galhada? Esquenta, não, se foi aquele mané do Betão, ele bem que não te merecia. Você precisa de algo bem melhor.
- Valeu.
- Tipo o Papai Noel – ele disse, com uma piscadinha.
- Tô indo.
- De quem são esses presentes?
- Eram. Não são mais. Só tem um vestidinho que ganhei na promoção porque comprei outro, mas o resto não tem dono.
- Tenho uma idéia. Você topa?
- Primeiro conta pra ver se eu topo, né.

E então naquele Natal eu não fiz nada do que havia programado. Não estive na casa do pai às dez, da mãe às dez e meia, da tia às onze, da vó do Beto às onze e meia e nem tive que torcer para sair cedo de lá. Não fiz escova, mão, pé, nem tomei banho. Saí do shopping direto para uma festa de crianças em um orfanato, que ganharam alguns presentes lindos e novinhos. Depois ainda fomos a um asilo, onde ficaram os outros presentes. Murilo tinha muito mais no carro, a minha contribuição foi bem pequena. Mas eu senti a alegria de estar ao lado dele e ver cada sorriso que recebia. Eu fui a assistente do Papai Noel mais bacana que eu já conheci, que ganhava no shopping, e gastava em presente para quem precisava.

- Obrigada, duende. Você é ótima ajudante.
- Também, com um Papai Noel como você…

Silêncio.

- Murilo, dá pra tirar a barba antes de me beijar?
- Opa, esqueci!

E eu me senti linda, amada, querida, tão feliz que nunca pensei que Natal pudesse ser tão legal. E continua sendo, todos os anos.

Feliz Natal!
Alegrias,
Fernanda.

Ficção – O perdão de Carina

segunda-feira, dezembro 8th, 2008

Eu só percebi a perfeita imbecil que eu era anos depois. Sério, foram anos para perceber. Primeiro eu realmente achava que tudo aquilo era normal, que eu só estava passando por um momento difícil, que ele era um cara especial e merecia uma segunda chance e que nunca mais em toda a minha vida, e se eu tivesse mais do que uma vida valeria também, eu encontraria alguém que me amaria como ele me amava. Eu vivia uma relação de palpitação no coração, daquelas ruins, da angústia e desconfiança, mas pensava que era boa.

Primeiro que ele não me amava. E só isso já seria suficiente para mandá-lo embora. E todo o resto, desde o começo, estava errado. Aquilo tudo não era normal merda nenhuma, por que desde quando “tudo bem” se um cara te trai e ainda bota a culpa em você? Ele não estava passando por momento difícil, era um vagabundo mesmo que só pensava em jogar futebol e comprar filmes pornôs na TV a cabo e não era nada especial, embora me fizesse acreditar nisso. Mesmo se eu ficasse sozinha para sempre, esse fim parecia melhor do que viver aquilo.

Lúcio não só me traiu como fez isso com uma cretina que morava no nosso prédio. Uma vizinha que iria ficar careca em poucos anos, mas ele não deve ter percebido. Aquelas entradas na testa me davam arrepios, mas foi com ela, com aquela mulher estranha, que ele saiu por três meses. Saiu, não, entrou, porque ainda confessou que passou uma semana com a estranhona lá em casa, quando eu viajei a trabalho. Que nojo.

- Eu não estou arrependido.
- Ãh?
- Eu estou apaixonado por ela, Carina.
- Peraí que eu não entendi, você tinha acabado de dizer que queria salvar nosso casamento antes de dizer que não está arrependido.
- Mas eu quero.
- Não dá pra unir “salvar o casamento” com “estou apaixonado por outra”.

E mesmo assim, mesmo assim eu ainda o deixei morando lá em casa. Eu falei um monte de abobrinhas, critiquei, mas acreditei na palhaçada de salvar o casamento depois que ele trouxe flores e disse “só fiz isso porque em casa não encontro o que preciso”. Como a careca do andar de cima era cozinheira profissional, não é que lá fui eu fazer um curso de culinária para agradar o marido? E lá recebo a ligação dele dizendo que sairia para jantar com os amigos. Em plena cinco horas da tarde de um sábado.

- Está cedo para um jantar. Eu mesma farei o jantar mais tarde.
- Nós precisamos ter nosso espaço, querida.

Entre mãos melecadas de massa caseira para espagete e um delicioso pesto aprendido no curso, que eu resolvi fazer no dia seguinte, eu percebi que aquela não era a vida que eu queria para mim. Não queria agradar alguém quando eu deveria receber os agrados depois da maior filhadaputice que um homem pode fazer com uma mulher, não sonhava em passar os meus dias vivendo uma relação em que só eu acreditava que poderia dar certo, quando a outra parte ainda pensava na outra e, principalmente, eu não merecia aquilo.

Foi quando ele entrou na cozinha perguntando o que tinha para jantar. Eu tirei o avental e limpei as mãos em um pano de prato.

- Macarrão. Mas só para mim. Vá embora agora. Você tem até o jantar para sumir da minha frente.

E foi desse jeito, sem programar, sem pensar em como seria um futuro horrível sem aquele crápula que eu imaginava amar, sem ponderar sobre nada, que eu coloquei o Lúcio para fora de casa, já que eu morava lá antes de nos casarmos, era eu quem pagava o aluguel e, bom, eu tinha sido a traída da história e não sairia dali de jeito nenhum. Para azar do safado, a careca foi viajar e nunca mais voltou e eu…. eu aprendi a me amar antes de amar outro homem. A me respeitar acima de tudo e só depois me permitir entrar em uma relação.

Anos depois eu percebi que fui muito mais estúpida do que pensei. Porque eu insisti eu sustentar uma mentira. Não sei qual foi o motivo – agradar os meus pais, o medo de ficar sozinha ou tudo junto -, mas o fato é que eu cresci só depois daquilo. E quando a gente se respeita, o amor vem. Mas um amor de verdade mesmo. Que só faz o coração palplitar se for de felicidade.

Ficção – Escolhas de Deise

segunda-feira, outubro 27th, 2008

Quando era criança, não pensei em ser outra coisa que não mulher casada. Conheci o Henrique quando tinha 17 anos e me apaixonei perdidamente – mas perdida fiquei quando resolvi casar. Na verdade, nunca saberei se foi amor, porque antes dele só havia paquerado o vizinho, que tinha 10 anos a mais e me achava uma menina (o que, de fato, eu era). O Rique tinha quase a minha idade, trabalhava com o pai em uma construtora e tinha muito dinheiro. Na verdade, o pai tinha muito dinheiro. Para meus pais, era o Rique um afortunado endinheirado.

Estudei até o terceiro ano do colegial e Rique, que não pensava em fazer faculdade, não me incentivou a cursar uma também, afinal, não iríamos precisar. Com aqueles olhos verdes, ele me conquistava a obedecer. Eu apenas dizia sim e pronto, se ele estava feliz, eu também estava. Assim, nós casamos quando eu completei 18 anos e fomos morar em uma das casas de seus pais. Uma das muitas que eles tinham.

No começo, eu era feliz. Eu acho que era feliz, porque se aquilo não era felicidade, eu não sei o que pode ser e me sinto constrangida em pensar que posso nunca ter sido feliz de verdade antes de agora. Mas até chegar agora muito passou.

Rique chegava tarde em casa e eu tinha empregados para fazer tudo por mim, mas como não trabalhava, eu mesma me aventurava na cozinha para preparar o jantar que, aliás, ele quase nunca comia.

Logo veio o Riquinho. Eu não queria esse nome, mas como tudo na vida, não parei para discutir. Ele quis colocar seu nome no filho, estava tudo certo, então. A Regina veio logo em seguida. Os dois não tinham nem um ano de diferença e por muito tempo eu esqueci de mim. Era como se eu não existisse. Rique voltava cada vez mais tarde e as poucas vezes em que eu saía era para eventos de sua empresa. Quando ele dizia que eu podia ir. E eu nunca questionei.

Meus filhos cresceram, foram para a escola e eu tinha orgulho daquelas duas criaturas. Minha vida era dedicada a eles e ao meu marido e era uma boa vida, uma vida confortável. Até que, um dia, num daqueles dias em que o Rique chegava tarde, eu disse que prepararia um lanche enquanto ele tomava banho. Encontrei uma mancha de batom no colarinho da camisa, aquela coisa clichê-ridícula-que-parece-mentira. Mas era verdade. O meu marido “perfeito”, aquele que todos diziam que era um presente dos céus, era um traidor mentiroso.

Quando mostrei a camisa, do lado de fora do Box do banheiro, ele desligou o chuveiro, enrolou uma toalha no corpo e disse apenas Não comece com sermão. Que ótimo, eu tinha acabado de descobrir uma traição e meu companheiro me mandava não começar com um sermão? Completou que não queria lanche nenhum e ia dormir. Foi para a cama como se nada tivesse acontecido. E passei aquela noite no banheiro chorando. E imaginando onde eu estava? Aquela Deise de 17 anos tinha morrido e todos os meus sonhos tinham ido junto para a cova.

No dia seguinte, quando saí do banheiro, ele já tinha ido embora para o trabalho e levado as crianças para a escola. Na hora do almoço eu as busquei, passamos em casa para arrumar as malas e disse apenas para que confiassem em mim. Sem despedidas, sem explicações, sem gritos ou desespero, escrevi uma carta com a palavra Adeus e deixei sobre a cama. Fomos embora para a casa dos meus pais. Eu não tinha casa. Nem a casa era minha. Por anos eu vivi os sonhos do traidor, as vontades dele no ambiente dele.

Em poucos dias eu aluguei uma casa e instalei as crianças no mesmo bairro para que pudessem ficar perto dos avós. E percebi que não queria pensão porque não desejava nada que vinha daquele homem. Nada. Se eu não tive amor por quase 10 anos, não seria agora que iria pedir dinheiro.

Na primeira visita ao mercado eu percebi que nem sequer sabia mais do que eu gostava. Não sabia qual comida comprar e nem mesmo qual pasta de dentes escolher. A prateleira me mostrava um mundo de possibilidades que eu nunca tive. Pela primeira vez, eu poderia escolher. Nem que a escolha fosse pelo mais barato. Era a minha escolha e eu dei muito valor.

A única coisa que eu sabia fazer era comida. Por causa dos meus treinos naquela cozinha com duas cubas, um metro de pia de granito para abrir as massas, um fogão de seis bocas e todos os utensílios mais bonitos que se via em revista, eu aprendi a me virar com um fogão vagabundo que comprei usado, uma pia minúscula e itens de plástico do mercadinho. E comecei a entregar marmitas.

Em pouco tempo, tive que contratar uma moça para me ajudar. Colocamos na porta da casa alugada uma placa que dizia Cozinha da Deise e instalamos mesinhas no quintal. A clientela cresceu e eu abri um restaurante. Eu podia viver sozinha. Meus filhos cresceram e aos 17 anos Regina conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Foi naquele dia que eu tomei uma decisão. Iria conversar com ela como nunca tinha feito em toda a nossa vida.

Eu não vou proibir nada, minha filha. Muito pelo contrário, porque namorar é saudável. Mas não cometa uma loucura. Vá estudar, vá se divertir, sair com suas amigas, aprender um ofício e então você poderá pensar se quer se juntar a alguém. Eu vou te contar a minha história, filha… e a decisão, depois, será sua.

Regina casou-se aos 30 anos com o mesmo rapaz, depois de anos de namoro e os dois terem concluído a faculdade. Hoje eu sou uma mulher ocupada. Além da minha rede de restaurantes, que estão espalhados por todo o país, ajudo a cuidar dos meus dois netos, um de cada filho. Tenho um namorado, mas não quero mais casar. Em compensação, quando vou ao mercado hoje em dia, eu sei exatamente o que comprar. O que eu gosto, o que eu quero. Hoje, aos 55 anos, eu sei quem eu sou, pela primeira vez na vida.

Ficção – Quase vida de Marli

terça-feira, agosto 5th, 2008

No dia seguinte ao seu aniversário de 42 anos, Marli decidiu acabar com a sua vida. O dia anterior tinha sido um dos mais solitários de que se lembrava, embora as memórias não fossem tantas. Sem pais, filhos, irmãos os tios, Marli passou horas deitada no sofá ouvindo o mesmo CD repetidas vezes, com o telefone sem fio na mão, mas o aparelho não tocou nem uma única vez. No ano anterior recebeu parabéns dos colegas de trabalho. Os abraços frios e sem sentimento não valeriam de nada para uma pessoa com amigos; para Marli, tinham um significado de existência.

O melhor era acabar com tudo naquele domingo. Marli não imaginava mais alguns anos de completa ausência. Ela não era infeliz, apenas não era nada. Tinha um bom emprego, um cargo importante em uma empresa respeitável, um salário que seria maior do que todas as suas amigas caso tivesse amigas, um apartamento confortável em uma cobertura de bairro calmo e residencial e uma saúde de ferro. Se esperasse um fim normal, seriam anos de completo nada. Marli precisaria agir.

O aniversário foi a última esperança e Marli já dormiu com a certeza dos acontecimentos do dia seguinte. A primeira decisão foi escolher a roupa: um vestido preto. No fundo do armário, encontrou um álbum de fotografias. Tinha mania de escolher as melhores fotos de cada ano e colocar em um único álbum. Casou-se e separou-se três vezes e em nenhuma delas teve coragem de jogar o álbum fora. Ali ela tinha uma quase vida.

O último casamento de Marli poderia ser resumido em um erro. Em nenhuma das fotos ela aparecia sorrindo. Foi então que ela percebeu que os mais bonitos lugares visitados não interferiam no semblante sem alegria. Marli aparecia, no máximo, com um sorriso de lábios cerrados. Justo ela, que gostava dos seus dentes. Marli sempre ouviu, quando criança, sobre o seu sorriso perfeito. Talvez o ciúme doentio do último marido ou a falta de vontade de ser vista pelo mundo a tenham feito esquecer que havia algo em si mesma que ela apreciava.

As fotos das primeiras páginas do álbum remeteram Marli à história com o primeiro marido, com quem se casou muito jovem e de quem se divorciou quando acreditou estar apaixonada pelo segundo marido. Marli pensava que o amor era feito de aventuras diárias, loucuras cometidas pela paixão e surpresas todos os dias. Com o primeiro marido ela tinha uma rotina agradável e feliz. Com o segundo, um sentimento arrebatador que era tão forte como as mãos pesadas daquele que dormia em sua cama. Conheceu o terceiro marido em um consultório, quando tentou se tratar de algo que pensava que tinha, mas poderia muito bem ser apenas desilusão.

Lembrou que as únicas risadas verdadeiras tinham sido dadas com aquele que ela dispensou. O primeiro não lhe proporcionava loucuras, mas trazia flores quase todos os dias. Colhia no quintal e entregava com um beijo. Escrevia poesias em guardanapos e deixava bilhetes no espelho. Marli percebeu somente anos depois que fora amada. Ironicamente, quando tudo estava quase no fim.

Com o vestido preto sobre a cama, buscou a caixa de remédios e segurou-a por um longo tempo. No colo, o álbum recebeu uma única lágrima. No momento em que o telefone tocou.

Não reconheceu a voz, mas ele pediu desculpas por não ter ligado no dia anterior. O atraso era pequeno, mas os votos de felicidade ainda valiam. Mas tanto tempo sem nos falar, por onde andava? Casei, separei, tive uma filha e estou sozinho. E você? Casei, separei e foram três vezes, mas não tive filhos. Trabalho naquele mesmo lugar, mas a função é outra. Coincidência, eu também. Não me esqueci do seu aniversário nem um dia em todos esses anos, vamos nos ver? E Marli disse sim. Sem saber o motivo, apenas disse sim e combinou o dia como sendo aquele, o horário para dali a poucos minutos.

O vestuário não era mais apropriado. Jogou no chão o vestido preto, no lixo a caixa de remédios e guardou no mesmo lugar do armário o álbum de lembranças. Ali, nas primeiras páginas, estavam as fotos do homem que iria encontrar em pouco tempo e a quem agradecia ter mudado seus planos. Quando Marli pensou que a estrada acabaria, tudo voltou ao início. E esboçou um sorriso aberto e encantador.